quinta-feira, 1 de março de 2007

Alguns amigos, colegas, inimigos e indiferentes, cobram-me a utilização do par direita/esquerda, quando se trata de minha crítica aos militantes. Tanto os setores da direita quanto os da esquerda que me conhecem sabem perfeitamente que não tenho o hábito (próprio dos militantes...) de rotular um pensamento ou pessoa segundo aquelas categorias. Antes de tudo, diante de uma enunciação, pergunto —seguindo a tradição jurídica prezada por I. Kant— sobre o fato indicado e sobre o estatuto de verdade do que se disse ou se escreveu.

Não quero saber se o fulano é de direita, esquerda, centro, católico, protestante, homosexual, heterosexual, sei lá o que mais. Quem me dá a honra de ler o que escrevo, sabe que sempre insisto em citar o texto de Hegel intitulado "Quem pensa abstrato?". Resumindo: certa jovem reclama para uma velhinha que vendia ovos na feira: "os ovos que a senhora me vendeu na semana passada estavam podres". Vejam bem: ovos são ovos e podem apodrecer nas mãos de qualquer um, honesto ou desonesto. Trata-se de um fato possível e previsível. Uma velhinha honesta, em atos e pensamentos, responderia: "traga-me os ovos podres e os trocarei". Com isso, ela garantiria que a frase da jovem seria provada ou não.

Mas, prossegue Hegel, não foi este o caminho empreendido pela vendedora macróbia. Furiosa, ela retruca de imediato :"Quem é você para dizer que os ovos vendidos por mim estão podres ?". A réplica tem a marca da má fé. A jovem enunciou algo sobre objetos que poderiam ser verificados. A velha responde apelando para a subjetividade, deslocando o campo da questão. E já no "quem é você", percebe-se o contra ataque próprio do sofista (seja ele bisonho, seja ele bem treinado na escola de Gorgias).

E prossegue a velhinha : "então não sabemos que seu pai ferido na guerra foi abandonado num asilo? E que sua mãe fugiu com um soldado francês, e também não sabemos como e onde você arruma dinheiro para comprar estes vestidos e fitas bonitos?". Aí a antilogia chegou ao máximo da má fé. Na impossibilidade de provar sua honesta posição, porque isto implicaria passar pelo estado dos ovos vendidos, a velha prefere, em vez de se defender, atacar. Assim, ficamos sabendo que se os ovos da feirante estão podres, também que as pessoas ligadas à sua adversária são podres (o pai é doente, a mão é covarde e adúltera, a mocinha é puta). O que se prova com tudo isso? Que nos pensamentos e nas ações é preciso ir aos fatos completos, à lógica, ao caráter das pessoas, sem rotulá-las.

Conheço pessoas de direita que respeitam fatos, sabem deduzir elementos lógicos uns dos outros, agem de modo reto e sem subterfúgios como os da velhota. Elas não acusam as idéias contrárias às suas, e seus enunciadores, de podridão (noética ou moral). Buscam pensar sobre os objetos (os ovos) que os seus adversários de esquerda ou de centro (alto ou baixo, pouco importa) lhe pedem que analisem. Nada perdem de suas convicções, por exemplo, quando lêem autores contrários ao que pensam. Aliás, não têm medo de ler aqueles autores. E mostram respeito por autores que pensam de modo diferente do seu, pois são os seus sparrings, os ajudam a fortalecer suas razões. Tais pessoas jamais serão militantes, no sentido boçal e habitual do termo. Elas não juram pelos seus mestres de pensamento, examinam pessoalmente os escritos e as falas de todos os que participam da ordem social. E decidem com base em seu próprio juízo, sem auxílio do papai Hitler e derivados contemporâneos.

Conheço pessoas de esquerda......[seguem exatamente as mesmas palavras do § acima até Hitler e derivados contemporâneos, troquem por favor por Stalin e seus derivados contemporâneos].


Um indício de pessoa de direita e de esquerda honestas e leais a si mesmas e aos outros, é a gentileza, a cortesia, o respeito pelos seres humanos. Quando alguém imagina ter o direito de menosprezar outros humanos, neles colocando apelidos, acusando-os de idiotice ou animalidade, temos a clara nota: trata-se de um militante e, portanto, de péssimo caráter. Olhem para o rosto dos militantes (de direita e de esquerda...) : quando "conversam" com alguém que não respeitam (e, por definição, só respeitam que pensa igual a eles, ou não pensa...) deixam os olhos vagando pela sala, pelo teto, pela janela, aguentando apenas até a hora em que o suposto inimigo pare de falar. Aí, sem levar em conta, minimamente, o que foi dito, repetem as suas verdades em frases estereotipadas.

Militantes me recordam as crianças que, nas cidades históricas brasileiras, se oferecem para mostrar igrejas, monumentos, museus, etc. "Esta igreja foi erguida em 1759 por X, por ordem do Rei de Portugal...etc". Se um turista pergunta: "mas quem pagou a construção?" ou uma outra pergunta não prevista no script, a criança olha feio para o incômodo indivíduo e recomeça: "Esta igreja foi erguida....". Militante é o que aprendeu um vade mecum e, com ele, aprendeu também a odiar quem não entra nos moldes discursivos e práticos do circulo ao qual ele, o militante, pertence.

Ficamos assim: tenho amigos de esquerda e de direita. Eles que me perdoem, mas recuso o procedimento de suas greis. Odeio ler análises de livros, filmes, partidos, religiões, etc. quando logo nas primeiras frases e insultos percebo os dedos da velhinha hegeliana que aponta para subjetividades, quando questões factuais e objetivas (os ovos estão podres?) surgem. A má fé dá-me engulhos. Um pouco de polidez no trato seria relevante, neste Brasil atrasado em todos os planos, sobretudo nos ideológicos.

Um abraço!

Roberto Romano

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Este espaço é uma tentativa de colocar à disposição de pessoas interessadas alguns textos teóricos, certas observações críticas, análises minhas e de outros.

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PROFESSOR DE FILOSOFIA UNICAMP