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Folha de São Paulo
1/03/2007, p. 02
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Lágrima sobre a necessidade
AO DEBATER delitos e penas, convém atentar às idéias que informam a ordem social vigente. Por séculos, travam-se combates por uma vida justa, igualitária e livre, em um mundo contraditório, que nega esses princípios e corrói o padrão liberal, hoje batizado "neo".
J. Locke enunciou os pressupostos do liberalismo ao basear estado natural e governo civil no direito à propriedade. Este deriva da posse e uso do "poder" que o homem tem sobre seu corpo e suas virtualidades: ao efetivar essa força no mundo, e deste apoderar-se, o indivíduo se autoconstitui e se humaniza. Todos têm a propriedade inalienável de si mesmos: "o labor de seu corpo e o trabalho de suas mãos são propriamente seus". Também o mundo é formado pelo ato humano: sem este, a natureza é deserto, "waste land".
Dessa apropriação derivam os atributos humanos: "Nada é mais evidente que as criaturas da mesma espécie e ordem, nascidas para as mesmas vantagens da natureza e uso das mesmas faculdades, devam ser iguais entre si, sem sujeição". A taxinomia, método da história natural, capta propriedade, igualdade e liberdade como inerentes a seres da mesma categoria. Só os espécimens completos unem-se para resguardar "suas vidas, liberdades e bens". A ciência natural dá-se, aí, como política: a igualdade específica define as regras para legitimar a desigualdade e discernir o inferior.
Esse quadro remete à idéia de crime, quebra da lei e punição. A igualdade dos membros plenos da espécie (os proprietários) implica a desigualdade dos que negam a regra, os degenerados. Perigosos, devem ser extintos como predadores: leões, lobos, tigres, aves de rapina.
A pena de morte cabe mesmo a delitos menores. Aplica-se até ao ladrão que não feriu nem atentou contra a vida de sua presa, pois a simples ameaça à liberdade pode colocar em risco tudo o mais. Do furto, deduz-se o ataque ao indivíduo em sua integridade: vida, liberdade, posses. O roubo deve ser pago com a morte: roubar os bens materiais é roubar a vida.
A lei da natureza, conhecida e aplicada pelos proprietários, só é real como força repressiva, do contrário seria vã. O poder de "todos" concentra-se em "cada um" e converte-se no comando de uns sobre outros. A igualdade funda o domínio. Mesmo as prerrogativas do magistrado deduzem-se das condutas correntes. O estado de natureza prolonga-se na sociedade civil. Sem cogitar a gênese do crime, Locke insiste no rigor do castigo, evidenciando a força compacta que originou as desigualdades modernas. Irremissível, o criminoso deve ser extirpado. Se fiel esse triste retrato, aos que recusam a truculência nada mais restaria que uma lágrima sobre a necessidade.
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O título do artigo acima é inspirado na análise de Hegel sobre os estoicos. O filósofo alemão diz que os resignados estoicos, que acreditam na racionalidade do mundo e na necessidade dos eventos, só podem mesmo deitar uma lágrima (não muitas, porque seria signo de desespero) sobre a lei de ferro que rege o mundo natural e humano.
RR