segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Algumas linhas sobre a maneira pela qual a ética prejudica a estética diderotiana...



Ao analisar a Divina Comédia, especialmente no livro sobre o Purgatório, Erich Auerbach afirma que os habitantes celestes daquele lugar, como têm a alma separada dos corpos. Dante, no entanto, lhes concede um corpo espectral de modo que eles possam ser reconhecidos, exprimir-se e sofrer (Purgatório, 3, 31 e seguintes). A sua relação com a vida terrena limita-se à memória. O poeta indica que eles possuem conhecimentos do passado e do futuro, os quais ultrapassam as medidas terrenas. Eles enxergam com nitidez, como se fossem hipermétropes, os acontecimentos que ocorrem na terra, num passado algo longinquo, podendo, pois predizer o futuro, enquanto são cegos para o presente terreno. Eles vivem uma experiência imutável, parada no tempo. Os mortos estão privados do presente terreno e das suas mudanças, mas a recordação e a participação no mesmo mundo é de tal modo, que a paisagem do além está cheia disso.

Diderot desempenha um papel essencial na história crítica da arte.O escritor teve antecessores imediatos, como Roger de Piles, do qual conheceu o Abrégé de la vie des peintres (1699) e o Cours de peinture par principes (1708). Durante todos os seus trabalhos sobre os Salões, ele teve Charles Lebrun como autor de referência. Consultando-se o livro fundamental de Lebrun, Expressions des passions de l ´âme (1727) nota-se a insistência dada ao rosto humano, seguindo Lebrun explicitamente André Alciati, Giambattista Della Porta. Pela escolha dos autores que serviram como fonte, pode-se aventar a hipótese de que Diderot busca na arte da pintura a passagem do mundo interior das paixões para a visibilidade representada artísticamente. Como indica Versini, Diderot conhece, além de livros sobre a referida arte, obras representativas das técnicas antigas e modernas, como é o caso do Laocoonte, do Gladiador que morre (ver a inspiração desta estátua, por Pierre Julien,1731-1804, escultor do rei). do Hércules de Farnesio, da Venus de Médicis. . Tais modelos, copiados milhares de vezes, com menor ou maior perícia, estão sempre na memória de Diderot. Além disso, ele viu quadros da Renascença e do século XVII, os quais lhe foram mostrados nas coleções do Duque de Orleans (no Palais-Royal) e de outros colecionadores, entre os quais o barão d´Holbach. Como a maioria dos pensadores europeus, ele sempre desejou fazer uma viagem pela Itália, não conseguiu. Mas como Imanuel Kant, compensa esta falha com livros que descrevem aquele país, como é o caso da Description de l ´Italie do padre Richard (1766). Quando esteve na Russia, passou por Leyde, onde viu os quadros de Rembrandt, que o maravilharam. E também esteve no Hermitage. Assim, ele fez uma apanhado considerável de informações técnicas e observou quadros de excelente qualidade.

Com isso, ele entra na cultura mais ampla, em termos pictóricos, da Europa no século dezoito. Nela, Rafael torna-se um paradigma, seguido de Rubens, de La Sueur (assuntos religiosos), Tenier para a pintura de genero e de Lorrain, Vernet, Robert. Tais modelos alarmam, como diz Versini, “os pigmeus” da época diderotiana. Como todo serviço em estado inicial, Diderot começou seu trabalho de maneira frouxa, mas em 1767 apresentou um balanço profundo e extenso da pintura francêsa.

O método diderotiano de trabalho reúne técnica e estética, e com ele se inicia a união, na crítica, de arte e literatura tal como será exercida por escritores como os irmãos Goncourt. Como seus adversários, Fréron em especial, ele trabalho como jornalista que remete seus textos para um periódico, tendo em vista informar o leitor. Com isto, dá elevação ao jornalismo, retirando-o das práticas ligadas ao cotidiano (libelos, as crônicas da corte, sensacionalismos, notícias das bolsas, etc.).

Diderot se interessa desde longa data pelas artes plásticas, bem antes dos Salões. Estes últimos foram escritos, a pedido de seu “amigo” (ou sanguessuga) Grimm, que tinha um jornal, a Correspondência Literária, cujos leitores privilegiados eram os poderosos europeus (reis, nobres, ricos). Diderot precisava ao mesmo tempo descrever o mais fielmente possível o que via nos quadros e atrair a atenção dos distantes “observadores” para as técnicas, os assuntos, a maestria ou ineficácia dos pintores, etc. Já ao dirigir os artigos da Encyclopédie, ele mergulhara no aprendizado das técnicas de pintura com os próprios artesãos (o que ele fez com quase todos os verbetes que editou ou redigiu). No artigo de sua lavra sobre a composição, pode-se encontrar as bases programáticas dos Salões.

Vejamos o que Diderot entende por composição na Enciclopédia. Em primeiro lugar, trata-se da parcela da arte que representa numa tela um assunto qualquer, da maneira mais vantajosa. “Vantagem” significa “emprego eficaz segundo os fins da pintura” e não o jeito de agradar os olhos do observador ou requerer dispêndio monetário do seu bolso. A composição exige que se conheça bem, seja no história ou no interior da natureza, ou ainda na imaginação, tudo o que supõe o assunto. Mas não basta conhecer, é preciso ter o gênio (génie) que usa tais dados com o gosto conveniente. Em terceiro lugar, não bastam o conhecimento e o gênio, é preciso disciplina e hábito do trabalho duro. Tais são as condições subjetivas para o trabalho artístico. Um quadro bem composto é “um todo fechado num só ponto de vista, no qual as partes concorrem para o mesmo fim e formam por sua correspondência mútua um conjunto tão real, quanto os dos membros num corpo animal, de modo que um pedaço de pintura feito por um grande número de pinceladas ao acaso, sem proporção, sem inteligência ou unidade, não merece o nome de uma verdadeira composição, tanto quanto estudos esparsos de pernas, nariz, olhos, na mesma cartolina, não merecem o nome de um retrato ou mesmo de figura humana”.

Antes de tudo, atentemos para os termos de alguém cujo apelido é Tonpla, ou seja Platão invertido. A figura do corpo mencionada acima é extraída do Fedro (238a) e nela faz-se referência ao discurso “que deve ser constituido como um ser vivo, com um corpo próprio, de tal modo que não lhe falte cabeça ou pés, mas possua um meio e extremidades em relação umas com as outras partes, redigidas para um todo”.Platão indica o discurso e a grafia, Diderot aponta para a pintura, numa sequência que une, ainda no espírito platônico, a grafia enquanto escrita e arte pictórica. Mas também é clara a presença da Epistola aos Pisões.Diderot a adapta mas não esquece o símile entre pintura e poesia, essencial no texto horaciano. É o que afirma o mesmo Diderot logo a seguir: “o pintor é sujeito em sua composição às mesmas leis que o poeta na sua”. A observação das três unidades (ação, lugar, tempo) não é menos essencial na pintura histórica quanto na poesia dramática.

A lei da composição é mais vaga em generos de pintura diferentes da histórica, a esta última deve-se ater o crítico. E Diderot indica que a unidade do tempo é mais severa para o pintor que para o poeta. “Concede-se vinte e quatro horas ao último, ou seja, ele pode, sem pecar contra a verossimilhança, reunir num intervalo de três horas que dura uma representação, todos os acontecimentos que puderem se suceder naturalmente no espaço de um dia. Mas o pintor possui apenas um instante quase indivisível. É a este instante que todos os movimentos da composição devem se relacionar: entre os movimentos, se noto alguns do instante que precede e do instante que segue, a lei da unidade de tempo é transgredida. No momento em que Calcas levanta o cutelo sobre o peito de Ifigênia, o horror, a compaixão, a dor, devem mostrar-se no mais alto grau nos rostos dos assistentes; Clitemnestra furiosa jogar-se-á sobre o altar, e se esforçará, apesar dos braços dos soldados que a reterão, por puxar a mão de Calcas e se colocar entre sua filha e ele; Agamenon terá a cabeça coberta pelo seu manto, etc.

É possível distinguir em cada ato uma pletora de instantes diferentes, entres os quais haveria pouca habilidade em não escolher o mais interessante. É, segundo a natureza do assunto, ou o instante mais patético, ou o mais alegre ou mais cômico. A menos que leis particulares não ordenem de outro modo e que não se reaveja do lado do efeito das côres, das sombras e das luzes, da disposição geral das figuras, o que se perde do lado da escolha do instante e das circunstâncias próprias à ação. Ou então que não se acredite em submeter o próprio gosto e gênio a certa puerilidade nacional, que não se honre muito frequentemente com o nome de delicadeza de gosto. Quantas vezes esta delicadeza que não permite ao infeliz Filotecto berrar na entrada da sua caverna, baniu objetos interessantes da pintura! Cada instante tem suas vantagens e desvantagens na pintura. Uma vez escolhido o instante, todo o resto é dado. Prodico supõe que Hercules em sua juventude, após a derrota do javali de Erimanto, foi acolhido num lugar solitário da floresta pela deusa da glória e pela dos prazeres, que o disputaram entre sí: quantos instantes diferentes esta fábula moral não ofereceria ao pintor que a escolhesse como assunto? Seria possível compor com eles uma galeria. Há o instante em que o herói é acolhido pelas deusas, o instante em que faz-se ouvir a voz do prazer, o instante em que a honra fala ao seu coração, aquele em que ele balança em si mesmo a razão da honra e do prazer, o instante em que a glória o toma e o outro, no qual ele decidiu-se inteiramente por ela.

Ao aspecto das deusas ele deve ter sido tomado de admiração e surpresa: terno com a voz do prazer, inflamando-se com a da honra. No instante em que balança suas vantagens, é sonhador, incerto, suspenso. À medida que o combate interior aumenta e que o momento do sacrifício se aproxima, a tristeza, a agitação, o tormento, as angústias, tomam conta dele, e premitur ratione animus, vincique laborat.

O pintor sem gosto ao ponto de tomar o instante em que Hercules decidiu-se inteiramente pela glória, abandonaria todo o sublime desta fábula e seria obrigado a dar uma face aflita à deusa do prazer que teria perdido sua causa, o que é contrário ao seu caráter. A escolha de um instante proibe ao pintor todas as vantagens dos outros. Quando Calcas enfiar o cutelo sagrado no peito de Ifigênia, sua mãe deve desmaiar. Os esforços que ela faria para deter o golpe pertencem a um instante passado. Voltar para ele um minuto significa pecar tão pesadamente quanto antecipar mil anos no futuro.

Existem no entanto ocasiões em que a presença de um instante não é incompatível com os traços de um instante passado: lágrimas de dor cobrem por vezes um rosto do qual a alegria começa e se assenhorear. Um pintor hábil colhe um rosto no instante da passagem da alma de uma paixão a outra, e faz uma obra prima. Tal é Maria de Medicis na galeria do Luxemburgo, Rubens a pinta de um jeito que a alegria de ter posto um filho ao mundo não apagou a impressão das dores do parto.Dessas duas paixões contrárias, uma está presente, a outra ausente.

Como é raro que nossa alma esteja numa base firme e determinada, e como nela ocorre quase sempre um combate de diferentes interesses opostos, não basta saber dar uma paixão simples. Todos os instantes delicados perdem-se para quem que não conduz seu talento até lá: não sairão de seu pincel nenhuma dessas figuras que nunca se viu e nas quais percebe-se sem cessar novas finezas à medida que as observamos: seus caracteres serão decididos em demasia para dar tal prazer, eles tocarão mais no primeiro golpe de vista, mas eles lembrarão menos.

A unidade da ação liga-se muito à de tempo: abarcar dois instantes é pintar simultâneamente um mesmo fato sob dois pontos diferentes de vista. Esta falta é menos sensível, mas no fundo mais pesada do que a duplicidade de assunto. Duas ações unidas, ou mesmo separadas, podem ocorrer ao mesmo tempo num mesmo lugar. Mas a presença de dois instantes diferentes implica contradição no mesmo fato. A menos que se queira considerar um e outro caso como a representação de duas ações diferentes numa só tela. Aqueles nossos poetas que não sentem possuir gênio bastante para tirar cinco atos interessantes de um assunto simples fundem várias ações numa só, abundam em episódios, e tornam pesadas suas peças na mesma proporção de sua esterilidade. Pintores caem às vezes no mesmo defeito. Não se nega que uma ação principal traga outras, acidentais. Mas é preciso que estas últimas sejam de circunstâncias essenciais à precedente. É preciso que exista ligação e subordinção entre e que o espectador nunca esteja perplexo. Variem o massacre dos Inocentes tanto quanto lhes aprouver. Mas que em qualquer lugar da tela eu lance os olhos e encontre tal massacre. Seus episódios ou me prenderão ao assunto, ou dele me afastarão. E o último desses efeitos é sempre um vício. A lei da unidade da ação é ainda mais severa para o pintor do que para o poeta. Um bom quadro fornecerá algum assunto, ou mesmo uma cena dramática. E um drama apenas pode fornecer matéria para cem quadros diferentes.

A unidade de lugar é mais estrita, num sentido, e menos em outro para o pintor do que para o poeta. A cena é mais extensa em pintura, mas ela é mais una do que em poesia. O poeta, que não é restrito a um instante indivisivel como o pintor, passeia sucessivamente o ouvinte de um apartamento a outro, enquanto o pintor se coloca num vestíbulo, numa sala, sob um pórtico, numa relva. E de lá não sai. Ele pode, com a perspectiva, aumentar seu teatro tanto quanto jlgar apropriado, mas sua decoração permanece. Ele não muda.

Subordinação das figuras: estas devem se fazer notar segundo o interesse que devemos ter por elas. Existem lugares relativos às circuntâncias da ação, elas devem ocupar naturalmente tais lugares ou deles se afasta. Cada figura precisa ser animada pela paixão e pelo grau de paixão conveniente ao seu caráter. E se uma delas fala, as outras devem escutar. Muitos interlocutores ao mesmo tempo fazem má impressão num quadro, tanto quanto numa reunião social. Como tudo é igualmente perfeito na natureza, num pedaço perfeito de pintura todas as partes devem ser igualmente cuidadas e só chamar a atenção pela sua maior ou menor importância. Se tivessemos diante de nós o sacrifício de Abraão, o arbusto e o bode não teriam menos verdade do que o sacrificador e seu filho. Todos devem ser igualmente verdadeiros na tela sem termer que os os objetos subalternos sejam façam negligenciar os importantes. Eles não produzem tais efeitos na natureza, por que os produziriam na imitação artística?

Ornamentos, roupas, etc. Não se recomenda o bastante a sobriedade e a conveniência nos ornamentos. Há em pintura, como em poesia, uma fecundidade infeliz. Se deve ser pintada uma manjedoura, por que apoiá-la contra as ruinas de um grande edificio e erguer colunas num lugar que só posso supor usando conjecturas forçadas? O preceito de embelezar a natureza estragou tantos quadros ! Não se busque embelezar a natureza ! Deve ser escolhida a que convem ao pintor, este deve trazê-la aos olhos escrupulosamente. As roupas devem ser conformes à história antiga e moderna, e não se coloque, numa paixão, judeus com chapéus cheios de plumas.

As regras gerais da composição são quase invariáveis e as da prática da pintura só podem lhes trazer alguma, ou nenhuma, alteração. Como o escritor narra um fato histórico como poeta ou historiador, um pintor dele faz um assunto de quadro histórico ou poético. No primeiro caso, parece que todos os seres imaginários, todas as qualidades metafísicas personificadas devem ser banidas. A história quer mais a verdade. Não existe um desses desvios nas batalhas de Alexandre. Parece que no segundo caso só deve ser pemitido personificar as que sempre o foram, a menos que se deseje expandir uma obscuridade profunda em assunto bem claro. Não admiro a alegoria de Rubens do parto da rainha como as apoteoses de Henrique: sempre achei que o primeiro desses objetos exigia toda a verdade histórica e o segundo todo o maravilhoso da poesia.

Uma composição pode ser facilmente rica em figuras e pobre de idéias, uma outra excitará muitas idéias, ou inculcará fortemente uma só, e só terá uma figura. O quanto a representação de um anacoreta ou filósofo absorto numa profunda meditação, não acrescentará à pintura de um isolamento? Parece que um isolamento não exige ninguém. No entanto, ele será bem maior se nela for colocado um ser pensante. Se o pintor faz cair uma torrente das montanhas, e se ele deseja nos espantar, deve imitar Homero colocando um pastor na montanha, que escuta amedrontado o barulho. Pintores devem ler os grandes poetas e recipocramente os poetas precisam ver os trabalhos dos grandes pintores. Os primeiros ganharão em gosto, em idéias, em elevação. Os segundos, exatidão e verdade. Quanto quadros poéticos admirados fariam sentir o seu absurdo se fossem pintados ?

Um pintor que ama o simples, o verdadeiro, o grande, apegar-se-á particularmente a Homero e a Platão. Nada direi de Homero, ninguém ignora até onde este poeta levou a imitação da naturza. Platão é menos conhecido neste aspecto, mas ouso, no entanto, assegurar que ele não perde para Homero. Quase todas os inícios de seus diálogos são obras primas de verdade pitoresca. E mesmo durante o diálogo elas são encontradas. Tomarei apenas um exemplo, do Banquete. Este, visto comumente como uma cadeia de hinos ao Amor, cantados por uma companhia (troupe, o termo é teatral, RR) de filósofos, é uma das apologias mais delicadas de Sócrates. Sabe-se em demasia a crítica injusta à qual suas ligações estreitas com Alcibiades o haviam exposto. O crime imputado a ele era de natureza tal que a apologia tornava-se uma injúria. E Platão cuida para que ela não seja o assunto principal de seu diálogo. Ele reúne filósofos num banquete e os faz cantar o Amor. A refeição e o hino acabavam quando se ouve um grande barulho no vestíbulo. As portas se abreme ve-se Alcibíades coroado de hera e cercado por uma companhia (troupe, mesma observação acima, RR) de instrumentistas. Platão lhe supõe esta gota de vinho que aumenta a alegria e dispõe à indiscreção. Entra Alcibíades e divide sua coroa em dias, coloca uma em sua cabeça e a outra em Sócrates. Informado do assunto, fica sabendo que os filósofos cantaram o triunfo do Amor. Ele canta sua derrota pela Sabedoria, ou os esforços inúteis que fez para corromper Sócrates. Este relato é conduzido com tamanha arte, que nele se percebe apenas um jovem libertino que fala por embriaguez, e que acusa a si mesmo sem misericórdia de ter os desejos mais corrpmpidos e o deboche mais vergonhoso. Mas fica no fundo da alma a impressão, sem que em nenhum momento se suspeite, que Sócrates é inocente e que ele é bem feliz de ser inocente porque Alcibíades, teimoso por seus próprios encantos, não deixou de notar ainda a sua força, desvelando seus efeitos perniciosos nos sábios de Atenas. Que pintura seria a entrada de Alcibíades e seu cortejo no meio dos filósofos! Ele não seria menos interessante e digno das pinceladas de Rafael ou de Vanloo, do que a representação desta assembléia de homens veneráveis arrastados pela eloquência e os encantos do jovem libertino, pendentes ab ore loquentis ?

Sigamos as indicações de Thomas M. Kavanagh, analista da pintura de Greuze e da crítica diderotiana. Este autor começa seu estudo com uma citação estratégica : “La peinture est l’art d’arriver à l’âme par l’entremise des yeux” (Diderot, Salão de 1769). No escritor da Carta sobre os Cegos e da Carta sobre os Surdos e os Mudos, a frase tem sentido certo. Citando este último escrito de Diderot: “minha idéia seria….decompor, por assim dizer, um homem, e considerar como ele depende de cada um dos seus sentidos. Lembro-me de ter-me ocupado algumas vezes desta espécie de anatomia metafísica; e achava que, de todos os sentidos, o olho era o mais superficial; o ouvido, o mais orgulhoso; o olfato, o mais voluptuoso; o gosto o mais supersticioso e o mais inconstante: o tato, o mais profundo e filosófico.” Na Carta sobre os cegos, Saunderson afirma que a vista “é um orgão…sobre o qual o ar faz o efeito de um cajado sobre minha mão”. E diz o autor, Diderot: “abram a Dióptrica de Descartes e vocês observarão os fenômenos da vista ligados aos do tato, e as pranchas de óptica cheias de figuras humanas ocupadas em ver com bastões, Descartes, e todos os que vieram depois dele, não puderam nos fornecer idéias mais nítidas da visão; e este grande filósofo não teve a este respeito mais vantagem sobre nosso cego (Saunderson, RR) do que o povo que possui olhos”.

No artigo “Aveugle” da Encyclopédie, fala-se da Carta sobre os Cegos (que valeu a prisão de Vincennes para Diderot) com muito cuidado, indicando que ela trazia coisas desagradáveis para as pessoas pias. For a isto, sua metafísica seria muito refinada. Pois bem, o mesmo artigo reitera a tese da vista enquanto tato : “é evidente que o sentido da vista sendo muito apropriado para nos distrair pela quantidade de objetos que ele nos apresenta ao mesmo tempo, os privados deste sentido devem naturalmente, e em geral, ter mais atenção aos objetos que tombam sob seus outros sentidos. É principalmente por esta causa que se deve atribuir a fineza do tato e do ouvido, que observamos em deteminados cegos, mais do que à superioridade real dos sentidos pelos quais desejou a natureza lhes compensar pela privação da vista. Isto é tão verdadeiro, que uma pessoa cega por acidente, socorre-se com frequência com os sentidos que lhe restam, recursos dos quais ela não suspeitava antes. Isto vem do fato de que esta pessoa sendo menos distraida, tornou-se mais capaz de atenção”.

A análise dos sentidos humanos, do tempo e do espaço, une-se à teorização da pintura e da poesia, incluindo-se aí o problema do olhar atento, sublinhado no artigo sobre a composição. Como a vista abarca muitos objetos ao mesmo tempo, ela se distrai fácilmente (taí, sua superficialidade). Veremos que este ponto é essencial nas teses de Denis Diderot sobre o observador e sobre os quadros de Greuze dedicados à atenção das figuras pintadas e do próprio observador.

Jean Baptiste Greuze, como nota Kavanagh, recebe particular atenção de Diderot nos Salões entre 1959 e 1769. Diderot acentua o gosto de Greuze, enquanto lhe repugna o “ petit goût” de Boucher. Este último pode ser um competente artesão, mas lhe falta a verdade nos quadros. Diderot torna esta falsidade pictórica evidente em seu comentário, que apenas enumera objetos justapostos (indicando o que reprova no texto sobre a composição, citado acima) : “mulheres, homens, crianças, bois, vacas, carneiro, cachorros, agua, fogo, uma lanterna, acendedores, bules, etc”. Tudo, então mostra o absurdo de Boucher. No Salão de1765, Diderot diz que “todas as suas (Boucher,RR) composições trazem um sofrimento insuportável para os olhos”. As figuras de Boucher exibem sobretudo “peitos e traseiros”. Pode-se admirar as cores usadas por ele, os detalhes de sua pintura, a variedade dos tons, mas o todo fica impenetrável. Suas massas não integradas de elementos díspares são incapazes de mover o espectador. Daí o apelo ao onírico, ao mítico, à estética anacrônica que não recorda o mundo efetivo. Sigo sempre a análise de Kavanagh, que acompanha, ponto a ponto, a crítica diderotiana a Boucher .

O juízo mais duro contra o pintor vem no Salão de 1765: “Este homem é a ruina de todos os jovens estudantes de pintura. Eles mal aprenderam a usar um pincel e segurar uma paleta e já começam a se atormentar, jogando-se em toda sorte de exatravagância”.

Sobre o quadro de Boucher: Angélique e Médor , produzido em 1763 e analisado no Salão de 1765, Diderot afirma que Médor escreve o seu nome e o do amada na árvore. Mas um comentador do site Ut Pictura 18 mostra que se trata de leitura defeituosa, pois o filósofo não atentou para os preceitos iconográficos da pintura libertina rococó. Médor arranca uma flor, significando com isto a perda da virgindade de Angélique. A fonte poética é Rolando furioso, canto 19 (Angélica e Médor): “Angelica a Medor la prima rosa/ coglier lasciò, non ancor tocca inante” (Angélica deixou Médor colher a primeira rosa/ ainda não tocada”). Diderot é cruel com o pintor e com o quadro: “Desafio que me mostrem alguma coisa que caracterize a cena e designe os personagens. E por Deus! Era só deixar-se conduzir pela mão do poeta. Como o lugar de sua aventura é mais belo, maior, mais pitoresco e melhor escolhido! É um antro rústico, é um lugar retirado, é a morada sombria e silenciosa. É alí que, longe de todo importuno, pode-se fazer um amante feliz e não em pleno dia, em pleno campo, sobre uma almofada. É sobre a espuma da rocha que Médor grava seu nome e o de Angélica. Veja bem, senhor Boucher, não existe senso comum em seu quadro. Trata-se de uma pequena composição de boudoir. E depois nem pés, nem mãos, nem verdade, nem cor, e sempre salsinha sobre as árvores. Olhe, ou melhor não olhe Médor, sobretudo suas pernas, elas pertencem a um jovenzinho que não tem gosto ou estudo. Angélica é uma pequena tripeira. Ah, a palavra canalha! De acordo, mas ele pinta. Desenho redondo, mole, carnes flácidas. Este homem só pega o pincel para mostrar peitos e bundas. Gosto muito de vê-las, mas não quero que elas me sejam mostradas”.

Em contraposição a Boucher, Diderot enxerga em Greuze um servidor da ética. Seus retratos de família são embebidos em propósitos morais. Kanavagh afirma que o mais fascinante em Greuze, segundo Diderot, é o seu efeito pedagógico regenerador em termos axiológicos nos que frequentam os Salões. Os quadros de Greuze significam para Diderot espécies de versões do ritual religioso, que oferece ao observador um modelo que pode ser mimetizado. A relação familiar fornece uma base secularizada para a moral. Segundo o nosso autor, “para Diderot Greuze é o Sumo sacerdote da nova religião do sentimento”.

Na análise, feita no Salão de 1763, do quadro A Piedade Filial de Greuze (1761) diz Diderot que Greuze é bem o seu pintor e que o quadro teria título melhor se fosse exposto como “Sobre a recompensa da boa educação”.

No quadro de Boucher, Medor et Angelique, Diderot afirma que Médor escreve o seu nome e o do amada na árvore. Mas um comentador do site Ut Pictura 18 mostra que se trata de leitura defeituosa, pois o filósofo não atentou para os preceitos iconográficos da pintura libertina rococó. Médor arranca uma flor, significando com isto a perda da virgindade de Angélique. A fonte poética é Rolando furioso, canto 19 (Angélica e Médor): “Angelica a Medor la prima rosa/ coglier lasciò, non ancor tocca inante” (Angélica deixou Médor colher a primeira rosa/ ainda não tocada”). Diderot é cruel com o pintor e com o quadro: “Desafio que me mostrem alguma coisa que caracterize a cena e designe os personagens. E por Deus! Era só deixar-se conduzir pela mão do poeta. Como o lugar de sua aventura é mais belo, maior, mais pitoresco e melhor escolhido! É um antro rústico, é um lugar retirado, é a morada sombria e silenciosa. É alí que, longe de todo importuno, pode-se fazer um amante feliz e não em pleno dia, em pleno campo, sobre uma almofada. É sobre a espuma da rocha que Médor grava seu nome e o de Angélica. Veja bem, senhor Boucher, não existe senso comum em seu quadro. Trata-se de uma pequena composição de boudoir. E depois nem pés, nem mãos, nem verdade, nem cor, e sempre salsinha sobre as árvores. Olhe, ou melhor não olhe Médor, sobretudo suas pernas, elas pertencem a um jovenzinho que não tem gosto ou estudo. Angélica é uma pequena tripeira. Ah, a palavra canalha! De acordo, mas ele pinta. Desenho redondo, mole, carnes flácidas. Este homem só pega o pincel para mostrar peitos e bundas. Gosto muito de vê-las, mas não quero que elas me sejam mostradas”.

Em contraposição a Boucher, Diderot enxerga em Greuze um servidor da ética. Seus retratos de família são embebidos em propósitos morais. Kanavagh afirma que o mais fascinante em Greuze, segundo Diderot, é o seu efeito pedagógico regenerador em termos axiológicos nos que frequentam os Salões. Os quadros de Greuze significam para Diderot espécies de versões do ritual religioso, que oferece ao observador um modelo que pode ser mimetizado. A relação familiar fornece uma base secularizada para a moral. Segundo o nosso autor, “para Diderot Greuze é o Sumo sacerdote da nova religião do sentimento”.

Na análise, feita no Salão de 1763, do quadro A Piedade Filial de Greuze, diz Diderot que Greuze é bem o seu pintor e que o quadro teria título melhor se fosse exposto como “Sobre a recompensa da boa educação”. “Tal genero me apraz. É a pintura moral. Pois bem! O pincel não foi empregado durante tanto tempo para expor o deboche e o vício? Não deveríamos estar satisfeitos ao vê-lo concorrer finalmente com a poesia dramática para nos tocar, nos instruir, nos corrigir e nos convidar à virtude? Coragem amigo Greuze, faça a moral em pintura, e o faça sempre assim. (…) Tudo se relaciona com o personagem principal, o que se faz e o que se fazia nos momentos precedentes. Tudo, até o fundo da pintura lembra os cuidados que se toma com o velho. É um grande lençol suspenso sobre uma corda, e que seca. Este lençol é bem imaginado tanto para o assunto da pintura quanto pelo efeito artístico. (…) Cada pessoa tem aqui, precisamente, o grau de interesse que convem à idade e ao caráter. O número das personagens reunidas num espaço muito pequeno é grande em demasia. No entanto, eles se acomodam sem confusão, pois este mestre excede sobretudo na ordenação da cena. A cor das carnes é verdadeira. Os tecidos são bem cuidados. Os movimentos não encontram obstáculos. Cada um é para o que foi feito. As crianças mais jovens são alegres, porque ainda não encontram-se na idade em que se pensa. A comiseração se anuncia fortemente nos maiores. O genro parece mais tocado, porque é a ele que o doente endereça sua fala e seus olhares. A jovem casada parece escutar com mais prazer do que com dor. O interesse, se não é apagado, pelo menos é quase insensível na velha mãe. E tudo isto está inteiramente na natureza. (…) Este quadro é belo e muito belo, infeliz quem o observe com o sangue frio! O caráter do velho é único. A criança que traz algo para beber é única. A velha, única. Em qualquer dos lados que coloquemos os olhos

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