Criticar um governo leniente é ser moralista?
Roberto Romano
Não aprecio metáforas médicas em análises políticas. Mas admito que os grandes filósofos nascem da medicina e com ela refletem sobre o Estado. Maquiavel, por exemplo. “Os corpos humanos melhor constituídos e que possuem vida mais longa são os que encontram em suas próprias leis a fonte de sua renovação. É evidente que, sem renovar-se, aqueles corpos perecem. Renovação, significa revitalizar o seu princípio. É preciso que o princípio das religiões, repúblicas, monarquias indiquem neles mesmos a vida que lhes fornece autoridade, seu primeiro vigor. Tal princípio se gasta com o tempo, sendo inevitável que o corpo sucumba se nada o reanima. Semelhante retorno aos princípios , às vezes, é produzido numa república pelo efeito da força (virtù) de apenas um cidadão, sem que seja necessária a lei repressiva como estímulo. Seu exemplo possui tanto poder que os bons querem de imitá-lo e os bandidos se envergonham de não segui-lo.” (Maquiavel, Discursos sobre a Primeira Década de Tito Livio, 3, 1)
Spinoza analisa esse “diagnóstico” do florentino sobre a vida do Estado, sua duração, mazelas e virtudes. Segundo uma estudiosa da Ética spinozana (Lucia Nocentini), as causas das crises políticas são pensadas por ele, a exemplo de Maquiavel, segundo o distanciamento ou separação diante do principio originário constitutivo. A perda ou acréscimo de elementos ao corpo político produzem o desequilíbrio ou reequilíbrio do todo. Diz Spinoza: “A causa principal de desagregação dos Estados é a que observa o agudíssimo florentino no primeiro capítulo do livro terceiro dos Discorsi, ou seja, que ao Estado como ao corpo humano se acrescenta algo que, por vezes, faz necessária uma intervenção curativa; e por isto é preciso que por intervalos o Estado seja reconduzido ao princípio sobre o qual foi instituído originariamente”.
O trecho de Maquiavel citado por Spinoza assume a metáfora para manter a saúde do corpo político. O florentino retoma o enunciado médico que diz Quod quotidie aggregatur aliquid, quod quandoque indiget curatione (“Que se acumula cada dia algum humor maligno o qual, de tempos em tempos, precisa ser purgado”). No Tratado Político, Spinoza especifica as causas da desagregação dos organismos políticos. A crise estatal não é definida unilateralmente face aos cidadãos, mas sobretudo diante da legitimidade do mando, a partir do metro trazido pelo consenso. A vida do Estado só vale na medida em que valem a vida dos que o compõem, esta é a sua razão de ser, esta é a majestade do corpo social. A democracia é o único remédio contra o pavor mútuo dos indivíduos. Esta é a réplica de Spinoza aos que, como Hobbes, multiplicam o pânico e a insegurança, por força de reprimir a liberdade pública dos cidadãos.
Os enunciados de Maquiavel e de Spinoza retomam o ensino hipocrático: “Arte longa, vida breve”. O estadista, como o sábio dedicado aos corpos, precisa dominar muitos conhecimentos e isto leva tempo. Mas o tempo das vidas humanas e a dos Estados que são por ela constituídos, tem limites. Se estadista e médico não dominarem os minutos, jamais ajudarão os seus concidadãos a chegarem à velhice. O domínio das crises é estratégico nas duas profissões. Saber teórico e prudência prática integram o arsenal dos bons profissionais, na política ou na saúde. Esta é a ética já defendida por Platão e presente nos escritos hipocráticos, retomada na modernidade em Maquiavel e Spinoza. De nada adianta o médico apavorar o paciente com o medo da morte ou da doença. Ele precisa transmitir coragem e força. De nada adianta o dirigente do Estado apontar com mão dura os inimigos internos ou externos da comunidade. Ele precisa dar o exemplo de virtù.
É por esse motivo, e não por simples moralismo, que médico ou estadista não podem agir de modo errado. Um médico que fuma e precisa sair da sala, onde atende uma pessoa, para nutrir seu vício, não age com a prudência requerida. Um dirigente político que se permite usar coisas públicas, legal mas ilicitamente, não opera com a prudência necessária. Quando agem de modo imprudente, abrem as portas para a licença geral, o destempero, a indisciplina. Se os cidadãos ou pacientes desobedecem os princípios da boa saúde cívica ou biológica, a morte ronda o corpo coletivo e o organismo dos indivíduos.
A lição de Maquiavel e de Spinoza deveria estar diante dos médicos e políticos brasileiros, sobretudo diante dos últimos. Se eles tivessem cultura histórica, veriam que a distância entre usar aviões da FAB para brincadeiras de seus pimpolhos e amigos, não é tão grande quanto a da conivência com os procedimentos de Fernandinho Beira-Mar. Na verdade, é da leniência nos costumes políticos que brota a força de todos os Fernandinhos. Gritar contra a permissividade dos governantes com o dinheiro dos impostos é impedir a morte do corpo social, acometido pela corrupção do tempo e dos costumes. Quem identifica, com má-fé, “moralismo” e crítica aos poderosos, já adoeceu de covardia e de cumplicidade com o crime e pisa o cemitério sem disto ter consciência.
Roberto Romano
Não aprecio metáforas médicas em análises políticas. Mas admito que os grandes filósofos nascem da medicina e com ela refletem sobre o Estado. Maquiavel, por exemplo. “Os corpos humanos melhor constituídos e que possuem vida mais longa são os que encontram em suas próprias leis a fonte de sua renovação. É evidente que, sem renovar-se, aqueles corpos perecem. Renovação, significa revitalizar o seu princípio. É preciso que o princípio das religiões, repúblicas, monarquias indiquem neles mesmos a vida que lhes fornece autoridade, seu primeiro vigor. Tal princípio se gasta com o tempo, sendo inevitável que o corpo sucumba se nada o reanima. Semelhante retorno aos princípios , às vezes, é produzido numa república pelo efeito da força (virtù) de apenas um cidadão, sem que seja necessária a lei repressiva como estímulo. Seu exemplo possui tanto poder que os bons querem de imitá-lo e os bandidos se envergonham de não segui-lo.” (Maquiavel, Discursos sobre a Primeira Década de Tito Livio, 3, 1)
Spinoza analisa esse “diagnóstico” do florentino sobre a vida do Estado, sua duração, mazelas e virtudes. Segundo uma estudiosa da Ética spinozana (Lucia Nocentini), as causas das crises políticas são pensadas por ele, a exemplo de Maquiavel, segundo o distanciamento ou separação diante do principio originário constitutivo. A perda ou acréscimo de elementos ao corpo político produzem o desequilíbrio ou reequilíbrio do todo. Diz Spinoza: “A causa principal de desagregação dos Estados é a que observa o agudíssimo florentino no primeiro capítulo do livro terceiro dos Discorsi, ou seja, que ao Estado como ao corpo humano se acrescenta algo que, por vezes, faz necessária uma intervenção curativa; e por isto é preciso que por intervalos o Estado seja reconduzido ao princípio sobre o qual foi instituído originariamente”.
O trecho de Maquiavel citado por Spinoza assume a metáfora para manter a saúde do corpo político. O florentino retoma o enunciado médico que diz Quod quotidie aggregatur aliquid, quod quandoque indiget curatione (“Que se acumula cada dia algum humor maligno o qual, de tempos em tempos, precisa ser purgado”). No Tratado Político, Spinoza especifica as causas da desagregação dos organismos políticos. A crise estatal não é definida unilateralmente face aos cidadãos, mas sobretudo diante da legitimidade do mando, a partir do metro trazido pelo consenso. A vida do Estado só vale na medida em que valem a vida dos que o compõem, esta é a sua razão de ser, esta é a majestade do corpo social. A democracia é o único remédio contra o pavor mútuo dos indivíduos. Esta é a réplica de Spinoza aos que, como Hobbes, multiplicam o pânico e a insegurança, por força de reprimir a liberdade pública dos cidadãos.
Os enunciados de Maquiavel e de Spinoza retomam o ensino hipocrático: “Arte longa, vida breve”. O estadista, como o sábio dedicado aos corpos, precisa dominar muitos conhecimentos e isto leva tempo. Mas o tempo das vidas humanas e a dos Estados que são por ela constituídos, tem limites. Se estadista e médico não dominarem os minutos, jamais ajudarão os seus concidadãos a chegarem à velhice. O domínio das crises é estratégico nas duas profissões. Saber teórico e prudência prática integram o arsenal dos bons profissionais, na política ou na saúde. Esta é a ética já defendida por Platão e presente nos escritos hipocráticos, retomada na modernidade em Maquiavel e Spinoza. De nada adianta o médico apavorar o paciente com o medo da morte ou da doença. Ele precisa transmitir coragem e força. De nada adianta o dirigente do Estado apontar com mão dura os inimigos internos ou externos da comunidade. Ele precisa dar o exemplo de virtù.
É por esse motivo, e não por simples moralismo, que médico ou estadista não podem agir de modo errado. Um médico que fuma e precisa sair da sala, onde atende uma pessoa, para nutrir seu vício, não age com a prudência requerida. Um dirigente político que se permite usar coisas públicas, legal mas ilicitamente, não opera com a prudência necessária. Quando agem de modo imprudente, abrem as portas para a licença geral, o destempero, a indisciplina. Se os cidadãos ou pacientes desobedecem os princípios da boa saúde cívica ou biológica, a morte ronda o corpo coletivo e o organismo dos indivíduos.
A lição de Maquiavel e de Spinoza deveria estar diante dos médicos e políticos brasileiros, sobretudo diante dos últimos. Se eles tivessem cultura histórica, veriam que a distância entre usar aviões da FAB para brincadeiras de seus pimpolhos e amigos, não é tão grande quanto a da conivência com os procedimentos de Fernandinho Beira-Mar. Na verdade, é da leniência nos costumes políticos que brota a força de todos os Fernandinhos. Gritar contra a permissividade dos governantes com o dinheiro dos impostos é impedir a morte do corpo social, acometido pela corrupção do tempo e dos costumes. Quem identifica, com má-fé, “moralismo” e crítica aos poderosos, já adoeceu de covardia e de cumplicidade com o crime e pisa o cemitério sem disto ter consciência.