segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

O Grande Gatsby


Revista Cult.

Hulks, nórdicos, wasps e a ética do racismo.


Roberto Romano


No lancinante O grande Gatsby, unem-se a crueza dos personagens e a delicada prosa do narrador, poeta dos sonhos e temores norte-americanos. No romance, surge o dono do mundo na figura de Tom Buchanan. Macho dominante, aquele exemplar da gente wasp (White Anglo-Saxon Protestant, o acronimo pode ser interpretado segundo a vontade) controla os demais personagens. O termo com o qual é acolhido por Daisy, sua mulher, evoca o gigante Hulk. Indivíduo enorme e truculento, ele esmaga os fracos. O termo enunciativo hulking physical specimen pode ser traduzido como “brutamontes”, como o fez Brenno Silveira. (1) No corpo de Buchanan explode a atitude automatizada pelos monopolistas da civilização ocidental e cristã. Esta, como o sujeito que se metamorfoseia em fera, ignora limites ao próprio crescimento e, quando se julga ameaçada, intumesce os músculos, desfere golpes letíferos à esquerda e à direita. Tom é o anacoluto das brancas éticas imperiais.

A conversa dos Buchanan, depois do incidente em que Tom machuca os dedos de sua mulher, demonstra leveza e nervosismo. O narrador expõe dúvidas sobre si mesmo num mundo onde tudo é oxímoro e no qual a vida apresenta-se como suave ferocidade: “Vocês fazem com que eu me sinta incivilizado (uncivilized) – confessei, após a segunda taça de um clarete notável. – Será que não podiam falar de colheitas ou coisa que o valha?”.

Fitzgerald condensa a idéia moderna de cultura e civilização: usa imagens engastadas nas representações conservadoras e sugere a via semântica que segue da “colheita” às sementes, lugar-comum elaborado pelos românticos. A cultura material e a do espírito têm suas raízes na terra-mãe. Com esse ideário conservador, muito se lutou contra o pensamento democrático.

Civilização, no romantismo, é colheita da cultura. A seqüência sugerida pelo narrador de O grande Gatsby ironiza o legado tradicionalista do século 19. Sem nenhuma pausa – o que retira o fôlego do leitor –, Fitzgerald evidencia a doutrina mais virulenta da modernidade. Seria preciso, segundo os autores do romantismo aristocrático, selecionar os embriões do corpo e da alma. “A civilização está caindo aos pedaços – irrompeu, violentamente, Tom –, tive de tornar-me pessimista a respeito de tudo. Você já leu The Rise of the Colored Empire, de autoria desse tal Goddard? – Não – respondi, um tanto surpreso pelo tom com que foram ditas tais palavras. –Bem, é um livro excelente, que todos deviam ler. A idéia é a de que, se não tivermos cuidado, a raça branca será… será completamente subjugada. É coisa científica; coisa provada.”

Páginas adiante, Fitzgerald completa o quadro racista iniciado na fala de Tom Buchanan. Este controla a sua amante, Myrtle, mas não determina os seus gostos de mulher ligada ao “lixo branco”, o mecânico Wilson. A cena liga-se à anterior, quando ocorre a diatribe de Tom contra o despedaçamento da raça branca. Myrtle deseja comprar um mascote. “O táxi deu marcha à ré e parou junto de um velho grisalho que se parecia absurdamente a John D. Rockefeller. Num cesto dependurado em seu pescoço havia uma dúzia de cachorrinhos de raça indeterminada. – De que raça são? – indagou, ansiosa, a Sra. Wilson, logo que o homem se aproximou do táxi. – De todas as raças. Que raça a senhora deseja? – Gostaria de um desses cães policiais…mas não creio que o senhor o tenha. O homem olhou, com ar de dúvida, para a cesta, enfiou nela a mão e tirou um dos cachorrinhos, a espernear, segurando-o por trás do pescoço. – Este não é um cão policial – disse Tom. – Não, não é exatamente um cão policial – concordou o homem, revelando desapontamento na voz. – Parece-se mais com um Airdale. (…) – É ele ou ela? – indagou, delicadamente, a Sra. Wilson. – Esse cachorro? É macho. – É cadela – afirmou, peremptório, Tom. – Aqui está o seu dinheiro. Vá comprar, com ele, mais dez cachorros.”

O macho Buchanan identifica o sexo e a raça de todos os dominados. Ele possui um saber “científico” sobre a arte de separar o igual do desigual no mundo humano e feroz. Antes, a colheita do vinho introduziu no romance a semeadura dos brancos, ameaçada pelas sementes coloridas das raças inferiores. Agora, vem a percepção das diferentes raças animais. O conhecimento de Tom é reconhecimento: ele sabe discriminar os seus iguais, descarta os diferentes femininos, os de outro matiz de pele e de alma e os de cultura inferior.

O “cientista” (Goddard) referido por Buchanan é Lothrop Stoddard. O livro em pauta chama-se The rising tide of color against white world supremacy, publicado em 1922 (O volume inteiro pode ser lido, na escrita original e sem cortes, em página da Internet : http://www.churchoftrueisrael.com/stoddard/rtc_toc.html). Tom, com base no ensino de Goddard/Stoddard, indica de imediato os inferiores. Vejamos como o próprio Stoddard enuncia tal discriminação: “Cada tipo de raça possui um conjunto especial de características: não apenas físicas e visíveis a olho nu, mas características morais, intelectuais e espirituais. Todas essas características são transmitidas, substancialmente imutáveis, de geração para geração”.

Stoddard une a imagem da cultura como fruto do labor agrícola à figura das raças caninas, todas evocadas em O grande Gatsby: “Não podemos transformar uma cepa ruim numa boa…não mais do que se pode transformar um cavalo de carga num caçador, colocando-o em estábulos elegantes, ou fazer de um vira-lata um cachorro de qualidade, ensinando-lhe alguns truques”. (2). Dessa fantasmagoria “científica”, Stoddard ruma para o campo que desgraçou o século 20 com os campos de concentração onde foram mortos milhões de judeus e outros seres humanos “inferiores”. Cito o autor: “Exatamente como isolamos as invasões das bactérias e deixamos que elas morram por inanição, limitando a área e a quantidade de seu suprimento de sangue, do mesmo modo podemos obrigar uma raça inferior a permanecer em seu hábitat nativo… (o que fará,) como acontece com todos os organismos, limitar… suas influências”. (3)

Fitzgerald não escreve um panfleto contra o racismo. Ele apalpa a alma de uma mentalidade assassina e irresponsável que se enfeita com belas palavras, mas esconde sua fetidez sob vestes hipócritas da cultura: “Essa idéia é a de que somos nórdicos. Eu o sou, você o é... produzimos todas as coisas que fazem a civilização... oh, ciência, arte e tudo o mais. Percebem?”. Buchanan recolhe o sumo das doutrinas racistas defendidas por Stoddard. Para este último, e para seus colegas de universidade e de imprensa, a raça nórdica seria superior. Povos do Mediterrâneo, dos Balcãs, da Polônia ou da Irlanda e naturalmente os judeus nunca chegam aos padrões civilizados. O grande Gatsby mostra com sutileza a mentira Wasp, a começar com a fábula da cultura e da civilização.

Edwin Black cita o debate parlamentar ocorrido na Virgínia em 1924, tendo em vista deter a mistura das raças. A lei colocaria limites estritos no registro dos nascimentos, definindo a origem racial dos indivíduos. Stoddard afirmou durante o episódio: “Considero essa legislação… como sendo do maior valor e da maior necessidade para que a pureza da raça branca seja salvaguardada da possibilidade de contaminação pelo sangue não-branco… Isso é uma questão de vida e morte nacional e racial”. (4).

Esse ideário levou à esterilização de pessoas, ao controle das vidas conjugais, ao genocídio nazista. Adolf Hitler e seu bando admiraram o trabalho de Stoddard e vice-versa. Stoddard era uma referência da revista Eugenical News. O número de setembro–outubro (1932) daquele periódico “publicou longo artigo elogiando Hitler e suas idéias eugenistas. O artigo também explicava como sua ideologia tinha sido orientada por autores americanos, como L. Stoddard e M. Grant. As eleições alemãs estavam a caminho e o texto profetizou os resultados: “Mais cedo ou mais tarde, o movimento hitlerista promete lhe conferir o poder total (e) dará ao movimento nórdico o reconhecimento geral e a promoção do estado alemão (…) quando eles (os nazistas) tomarem o governo na Alemanha, podemos esperar novas leis de higiene racial, uma cultura consciente e uma política externa de caráter nórdico, num curto período de tempo”. (5).

Quando os EUA ainda guerreavam Hitler, Stoddard foi recebido pelo Füher e acólitos. O norte-americano sentou-se em certo tribunal alemão para observar os julgamentos de judeus e não-judeus. Em seu livro Into the darkness (1940), elogia os métodos nazistas na “seleção” das raças. O entusiasmo com a ditadura marrom era tamanho que num capítulo intitulado “Eu vi Hitler”, Stoddard exclama: “Naquele momento, fui convocado à Presença”. É devido a essas trevas na sua cultura que Fitzgerald assim termina a odisséia de Gatsby: “Ele viera de longe…e não sabia que seu sonho já havia ficado para trás, perdido em algum lugar, na vasta obscuridade que se estendia para além da cidade, onde as escuras campinas da república se estendiam sob a noite…”

Nas palavras sobre a civilização emitidas por governantes como G. W. Bush e amigos, ressoa o passado eugenista que prosperou nos EUA. Importa, no entanto, recordar que no mesmo solo brotaram os Stoddard e pessoas como Fitzgerald e muitos outros, cuja ciência, técnica, poesia não servem aos interesses dos Hulks nórdicos, ocasionalmente alojados na Casa Branca.

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