“Falar mal, falar muito ou não falar o bastante são defeitos comuns da lingua. Digo proporcionalmente o mesmo sobre a pena. Escreve-se mal, escreve-se às vezes muito, e às vezes não se escreve o bastante”. (1)
Hoje, enterrados os tempos em que a elegância definia a escrita e a fala, percebemos os estragos da midia e da semicultura. Após séculos de controle e disciplina para determinar o perfeito decorum pouco resta da ética normativa e dos valores bons e belos. A idade moderna começou com o sinal da grosseria: In hoc signo vinces. “Sapatos de chumbo nos pés dos homens, nunca asas em suas costas” dizia Francis Bacon, para acentuar que a leveza no bailado se conquista apenas com exercícios rigorosos, e isto exige bons costumes e disciplina. Um gramático do século 16, talvez Roger Ascham, afirmava: se uma nobre comparece ao baile da corte e está melhor vestida do que a rainha, ela é indecorosa; se ostenta roupas menos enfeitadas do que as de suas iguais, também se cobre de indecoro. Assim a escrita: se abusa das imagens ela despreza o leitor e torna-se falastrona, exibida. Se não as usa, ofende o senso estético de quem abre um livro.
Exemplos às centenas desse refinado cálculo que determina o decoro foram recolhidos no trabalho antigo, até hoje fonte de análise, escrito por Rosemund Tuve sobre a imagética renascentista. (2) No século 18 a torrente verbal inundou a cultura e levou de roldão a fineza, os bons modos. É a democracia em marcha, inclusive na lingua. Tudo se fala, tudo se compra, tudo se expõe em público, tudo se vota. E a escrita transforma-se no espetáculo indecente dos sacerdotes da nova religião niveladora, os “artífices das boas palavras e dos intermináveis discursos, espantosos faladores e polígrafos, falastrões de boca e de pena”. ( 3)
A inflação verbal aumentou com o romantismo conservador ou progressista na exata medida em que o decoro perdeu o dominio das mentes e da escrita. Os palavrosos levantam ondas discursivas que banalizam sentidos e razões e jogam melaço em frases radiosas, cativam inocentes. Chegaram as teses sobre a “sinceridade” como critério ético e estético, as batidas cardíacas como sinal de verdade e beleza. (4 ) “O romantismo é a ressonância do século 18, uma espécie de…exaltação em grande estilo (na realidade, um belo exemplo de histrionismo e de auto-engano: se desejava representar a natureza forte, a grande paixão)”. (Nietzsche)
Schopenhauer, certeiro como sempre, acusou o ponto relevante na maré verbal que dominou a cultura moderna: os falastrões da ética e da estética seriam, no seu entender, apenas isto: desonestos. Seu juízo moral captou e demoliu as catedrais sistemáticas edificadas por Schelling, Hegel, amigos e filhotes. Mas o elemento moral não basta para descrever o inominável horror da modernidade. É preciso acrescentar uma análise propriamente estética.
“Schopenhauer acusou asperamente a época de Hegel e Schelling de desonestidade. Não levemos, entretanto, em consideração a moral; Hegel é um gosto…e não apenas um gosto alemão, mas europeu.” ( 5) O resultado encontra-se em Victor Hugo (vagalhões de palavras) e na música de Richard Wagner, suprema retórica hegeliana da Idéia. Com o controle sistemático da sensibilidade, notável em Hegel, Wagner poderia mesmo dizer, contra toda a estética, uma “verdade” lógica supostamente objetiva: sua música “não era apenas música, mas infinitamente mais!” A sensibilidade dobrada pela razão ética conduziu, denuncia Nietzsche, à “submissão ao real. Já o sucesso de Hegel contra o ´abuso da sensibilidade´ …. depende do elemento fatalista do seu modo de pensar, da sua crença de que a razão está mais no lado vencedor, da sua justificativa do ´Estado´ real (em vez da ´humanidade´, etc.)”. (6 )
“Sentido é a palavra maravilhosa que remete ao mesmo tempo para o lógico e o corporal” disse Hegel. Assim temos a unidade entre ética e estética, mas com predomínio da primeira sobre a segunda. E o mundo “superior” da filosofia e do Estado mostra-se como o destino fatal dos humanos. As artes entoam o hino do “ainda não” no triunfo do Absoluto em forma do Logos imperial, na pessoa de Sua Majestade Napoleão Primeiro. Lamber as botas de semelhante ser divino é tarefa da fala e da escrita, naturalmente sob o tacão da censura. Fala-se em demasia, escreve-se em demasia, bajula-se em demasia. Como o silêncio é raro e caro!
Não é sem motivos que o livro de Amelia Valcárcel tem como referência Wittgenstein. Quando se trata dos nexos entre ética e estética, dada a tradição do palavrório e da perda quase definitiva de todo decorum, é quase impossível não repetir enunciados gastos ou cobertos pela poeira do lugar comum e do pedantismo. Não esqueçamos que Wittgenstein é o mesmo que enunciou o tremendo veto do Tratactus : “O que não podemos falar, devemos manter em silêncio” . Em Ética contra Estética a autora, fina analista de problemas axiológicos e políticos, com prática nos debates e polêmicas da vida social, abre um campo de estudos originalíssimo. Conhecedora a fundo das doutrinas expostas pelo idealismo alemão (7 ) ela não se limita à exegese enfadonha das “grandes idéias” nem aplica de modo arbitrário os filosofemas aos eventos e atos. Amelia Valcárcel descortina ângulos diferentes, dobra as frases dos pensadores e mostra o que elas podem esconder ou revelar, sempre em situações concretas.
Não encontrará o leitor nas páginas seguintes um “tratado de ética” ou de “estética”, mas um rico rendilhado de noções e de problemas. Com mão segura e sensível a filósofa domina a escrita polida (sem os jargões excludentes usados e abusados pelas seitas universitárias) com primor. Encanta seguir suas passagens de Hegel a Schopenhauer e deste a Bergson, Kierkegaard e, last but not least, Wittgenstein. Cada um destes nomes possui um “proprietário”, singular ou coletivo, que o explora no grande mercado das idéias. Surgem os especialistas no segundo parágrafo da Crítica da Razão Pura, ou os doutores que dominam perfeitamente as primeiras linhas da República, ou enfim, os iluminados que interpretam os primeiros parágrafos de O Capital. Com a carta patente nas mãos, cada um deles explora (o termo é exato) ou especula (mais exato ainda) na infindável venda e compra de prestígio, bolsas de estudo, assessorias governamentais, etc. A raiva dos magistrais universitários será grande ao passear por estas páginas brilhantes e inteligentes: existe muito dos “classicos” nas linhas de Valcárcel, mas nelas se percebe uma individualidade que pensa com autonomia diante (e se preciso, contra) os procedimentos acadêmicos oficiais.
Se o leitor me permite uma sugestão, proponho o seguinte: após ler e reler as análises da autora, com o encantamento que brota de seu livro, consulte um volume da Revista Autrement anterior a Ética contra Estética. ( 8) Alí, vários escritores se interrogam sobre as divisões antigas entre ciência e arte. Uma colaboradora, Monique Sicard, enuncia o difícil diálogo entre os artistas e os que dedicam-se à ciência: “Se os criadores reivindicam uma atividade de ´pesquisador´, inversamente os cientistas usam palavras que pertencem por vezes mais ao vocabulário da estética do que da ciência. Eles falam em ´sentimento estético difícil de transmitir´, de um ´brilho enceguecedor devido à beleza dos fenômenos ou de suas explicações´. Sim, a pesquisa científica gera autênticos choques emocionais. Faltam palavras então para dizer e as pessoas se dirigem para um novo vocabulário. Como falar da emoção da descoberta? Que escondem as palavras? As que dizem ´pureza´, ´revelação´ não induziriam à certa desconfiança? O ´encanto´das partículas não existiria apenas para camuflar, precisamente, a ausência desse encanto? As palavras não teriam como função mascarar a austeridade e o rigor dos trabalhos científicos?”. (9 )
Questões próximas podem ser dirigidas aos nexos de continuidade ou contradição entre ética e estética. Durante muitos anos, por exemplo, o pensamento marxista procurou fugir de todo “esteticismo”, dada a tragédia nazista. Mas, como diz o cineasta Syberberg (ele mesmo um personagem polêmico), resultou desta fuga apenas o monopólio do estético pelos admiradores do pensamento nazista, enquanto aos cérebros de esquerda ficaram apenas os esquemas lógicos que se traduziram no fatalismo hegeliano da Revolução que nunca honrou suas promessas.
No MIT, após a catástrofe que tombou sobre Hiroshima, físicos e engenheiros que idearam os artefatos nucleares tentaram “salvar” as sensibilidades dos jovens estudantes e futuros tecnocratas lhes ensinando estética. Para isto, artistas foram contratados criando um Departamento específico. Com o tempo surgiu a surpresa: os artistas adquiriram respeitabilidade na instituição como pesquisadores, mas seu grande contributo foi o trabalho com manipulação de imagens usadas na propaganda e na TV (expressões quase sinônimas) da guerra. Por exemplo, no primeiro conflito do Golfo. (10 ) Estética contra ética e ética contra estética, a questão permanece e deve ser pensada.
Com mão segura Amelia Valcárcel introduz os problemas filosóficos da atualidade e não poupa palavras, não as mastiga. Longe da “sinceridade” ao modo de Carlyle e dos românticos (cujo patrono é Rousseau) ela não expõe sua subjetividade ou idiossincrasias teóricas, mas se instala no terreno perigoso de dois impérios, inimigos desde o momento em que Platão expulsou o poeta e o artista do Estado ético. Mas o abismo entre os campos foi trabalhado pelas pontes lançadas, não raro no vazio, por escritores que, à semelhança de Valcárcel, rompem barreiras no ato de pensar. Eles, como Spinoza, desconhecem limites noéticos. Instalados em cátedras ou delas ausentes, tais seres irriquietos representam perigo para os “queimadores de livros” (expressão saborosa e realista de Jacques le Goff sobre os mestres universitários) que desejam manter os territórios bem guardados pelas taxinomias e etiquêtas.
Há um fenômeno brasileiro que todos conhecem: a pororoca, encontro das águas escuras com as mais claras de um rio, no Amazonas. O estrondo causado pelo choque atemorizou os índios que o nomearam pela onomatopéia Poroc-poroc, o barulho destrutivo. O livro na sua mão, leitor, é uma autêntica pororoca espiritual. Nele, encontram-se as ondas violentas da ética e as que derivam da estética. Nele, é destruido o remanso das águas costumeiras, o que fornece um sopro vital para quem deseja respirar o mundo para além das estreitas e estritas margens acadêmicas. Cuidado com a navegação nessas águas. Bom proveito diante da esplêndica paisagem que se descortina graças ao trabalho de Amelia Valcárcel. Parabéns ao Senac e à Editora Perspectiva por mais este contributo de fôlego para a cultura brasileira.
Roberto Romano
Notas
(1) “Parler mal, parler trop ou ne pas parler assez sont des défauts ordinaires de la langue. Je dis à proportion la même chose au sujet de la plume. On écrit mal, on écrit quelquefois trop, et quelquefois on n´écrit pas assez”. Abbé Dinouart, L´arte de se taire, 1771 (Paris, Ed. Jerome Millon, 1987).
(2) Tuve, Rosemund. Elizabethan and Metaphysical Imagery: Renaissance Poetic and Twentieth-Century Critics. Chicago: U of Chicago P, 1947
(3) Georges Daniel: Fatalité du secret et falalité du bavardage au XVIIIe siècle. La Marquise de Merteuil et Jean-François Rameau (Paris, Nizet, 1966).
(4) Abrams, M.H. The mirror and the lamp. Romantic theory anf critical tradition. (Oxford, University Press, 1953).
(5) “Hegel ist ein Geschmack …Und nicht nur ein deutscher, sondern ein europäischer Geschmack!”. Nietzsche, F. : “Der Fall Wagner”, in Werke, Ed. Colli, G. e Montinari, M. (Berlin, Walter de Gruytre & Co. 1969), V. I, p, 30. Na tradução italiana, cf. Il caso Wagner,Ed. Colli e Montinari, M. (Milano, Mondadori, 1981), p. 26.
(6) Nietzsche, Fragmentos recolhidos por Colli e Montinari, edição italiana citada, p. 274.
(7) São absolutamente necessárias as leituras de dois livros seus, estratégicos para o debate sobre a crise atravessada pelas democracias ocidentais (existiriam democracias não ocidentais?) : Hegel y la ética (1987) e Del miedo a la igualdad (1993). Neles, a autora, “que não tem frio nos olhos” (traduzo a exata expressão francesa) enfrenta ao mesmo tempo os clássicos da ética e os critica com destemor e razões, mas também coloca-se como obstáculo ao filistinismo das cátedras, na Espanha ou no mundo. A linguagem desabrida e livre por ela utilizada é a perfeita expressão do decorum, se entendermos por esta prática o hábito de dizer as coisas como elas são, sem enfeites, sem bajulações, sem subterfúgios. A sua ensaística, onde se insere o presente livro, não reside nas prateleiras mofadas ou nas cópias (do tipo executado pelas máquinas xerox) dos autores clássicos. Elas os pensa e critica, testa os seus enunciados nas conjunturas políticas, morais, estéticas. E apresenta suas conclusões, sempre polêmicas e provisórias, pensando diante do leitor.
(8) Cf. Autrement, número 158, octobre 1995. Título da edição : Pesquisadores ou Artistas? Entre arte e ciência, eles sonham o mundo (Chercheurs ou Artistes? Entre art et Science, ils rêvent le monde).
(9) “Art et science: la chute du mur?”, na revista citada, p. 33.
(10) Cf. Epstein, Judith: “Contrechamp outre-Atlantique: les dérives d´une politique”, Revista Autrement citada, páginas 204 e seguintes.
Hoje, enterrados os tempos em que a elegância definia a escrita e a fala, percebemos os estragos da midia e da semicultura. Após séculos de controle e disciplina para determinar o perfeito decorum pouco resta da ética normativa e dos valores bons e belos. A idade moderna começou com o sinal da grosseria: In hoc signo vinces. “Sapatos de chumbo nos pés dos homens, nunca asas em suas costas” dizia Francis Bacon, para acentuar que a leveza no bailado se conquista apenas com exercícios rigorosos, e isto exige bons costumes e disciplina. Um gramático do século 16, talvez Roger Ascham, afirmava: se uma nobre comparece ao baile da corte e está melhor vestida do que a rainha, ela é indecorosa; se ostenta roupas menos enfeitadas do que as de suas iguais, também se cobre de indecoro. Assim a escrita: se abusa das imagens ela despreza o leitor e torna-se falastrona, exibida. Se não as usa, ofende o senso estético de quem abre um livro.
Exemplos às centenas desse refinado cálculo que determina o decoro foram recolhidos no trabalho antigo, até hoje fonte de análise, escrito por Rosemund Tuve sobre a imagética renascentista. (2) No século 18 a torrente verbal inundou a cultura e levou de roldão a fineza, os bons modos. É a democracia em marcha, inclusive na lingua. Tudo se fala, tudo se compra, tudo se expõe em público, tudo se vota. E a escrita transforma-se no espetáculo indecente dos sacerdotes da nova religião niveladora, os “artífices das boas palavras e dos intermináveis discursos, espantosos faladores e polígrafos, falastrões de boca e de pena”. ( 3)
A inflação verbal aumentou com o romantismo conservador ou progressista na exata medida em que o decoro perdeu o dominio das mentes e da escrita. Os palavrosos levantam ondas discursivas que banalizam sentidos e razões e jogam melaço em frases radiosas, cativam inocentes. Chegaram as teses sobre a “sinceridade” como critério ético e estético, as batidas cardíacas como sinal de verdade e beleza. (4 ) “O romantismo é a ressonância do século 18, uma espécie de…exaltação em grande estilo (na realidade, um belo exemplo de histrionismo e de auto-engano: se desejava representar a natureza forte, a grande paixão)”. (Nietzsche)
Schopenhauer, certeiro como sempre, acusou o ponto relevante na maré verbal que dominou a cultura moderna: os falastrões da ética e da estética seriam, no seu entender, apenas isto: desonestos. Seu juízo moral captou e demoliu as catedrais sistemáticas edificadas por Schelling, Hegel, amigos e filhotes. Mas o elemento moral não basta para descrever o inominável horror da modernidade. É preciso acrescentar uma análise propriamente estética.
“Schopenhauer acusou asperamente a época de Hegel e Schelling de desonestidade. Não levemos, entretanto, em consideração a moral; Hegel é um gosto…e não apenas um gosto alemão, mas europeu.” ( 5) O resultado encontra-se em Victor Hugo (vagalhões de palavras) e na música de Richard Wagner, suprema retórica hegeliana da Idéia. Com o controle sistemático da sensibilidade, notável em Hegel, Wagner poderia mesmo dizer, contra toda a estética, uma “verdade” lógica supostamente objetiva: sua música “não era apenas música, mas infinitamente mais!” A sensibilidade dobrada pela razão ética conduziu, denuncia Nietzsche, à “submissão ao real. Já o sucesso de Hegel contra o ´abuso da sensibilidade´ …. depende do elemento fatalista do seu modo de pensar, da sua crença de que a razão está mais no lado vencedor, da sua justificativa do ´Estado´ real (em vez da ´humanidade´, etc.)”. (6 )
“Sentido é a palavra maravilhosa que remete ao mesmo tempo para o lógico e o corporal” disse Hegel. Assim temos a unidade entre ética e estética, mas com predomínio da primeira sobre a segunda. E o mundo “superior” da filosofia e do Estado mostra-se como o destino fatal dos humanos. As artes entoam o hino do “ainda não” no triunfo do Absoluto em forma do Logos imperial, na pessoa de Sua Majestade Napoleão Primeiro. Lamber as botas de semelhante ser divino é tarefa da fala e da escrita, naturalmente sob o tacão da censura. Fala-se em demasia, escreve-se em demasia, bajula-se em demasia. Como o silêncio é raro e caro!
Não é sem motivos que o livro de Amelia Valcárcel tem como referência Wittgenstein. Quando se trata dos nexos entre ética e estética, dada a tradição do palavrório e da perda quase definitiva de todo decorum, é quase impossível não repetir enunciados gastos ou cobertos pela poeira do lugar comum e do pedantismo. Não esqueçamos que Wittgenstein é o mesmo que enunciou o tremendo veto do Tratactus : “O que não podemos falar, devemos manter em silêncio” . Em Ética contra Estética a autora, fina analista de problemas axiológicos e políticos, com prática nos debates e polêmicas da vida social, abre um campo de estudos originalíssimo. Conhecedora a fundo das doutrinas expostas pelo idealismo alemão (7 ) ela não se limita à exegese enfadonha das “grandes idéias” nem aplica de modo arbitrário os filosofemas aos eventos e atos. Amelia Valcárcel descortina ângulos diferentes, dobra as frases dos pensadores e mostra o que elas podem esconder ou revelar, sempre em situações concretas.
Não encontrará o leitor nas páginas seguintes um “tratado de ética” ou de “estética”, mas um rico rendilhado de noções e de problemas. Com mão segura e sensível a filósofa domina a escrita polida (sem os jargões excludentes usados e abusados pelas seitas universitárias) com primor. Encanta seguir suas passagens de Hegel a Schopenhauer e deste a Bergson, Kierkegaard e, last but not least, Wittgenstein. Cada um destes nomes possui um “proprietário”, singular ou coletivo, que o explora no grande mercado das idéias. Surgem os especialistas no segundo parágrafo da Crítica da Razão Pura, ou os doutores que dominam perfeitamente as primeiras linhas da República, ou enfim, os iluminados que interpretam os primeiros parágrafos de O Capital. Com a carta patente nas mãos, cada um deles explora (o termo é exato) ou especula (mais exato ainda) na infindável venda e compra de prestígio, bolsas de estudo, assessorias governamentais, etc. A raiva dos magistrais universitários será grande ao passear por estas páginas brilhantes e inteligentes: existe muito dos “classicos” nas linhas de Valcárcel, mas nelas se percebe uma individualidade que pensa com autonomia diante (e se preciso, contra) os procedimentos acadêmicos oficiais.
Se o leitor me permite uma sugestão, proponho o seguinte: após ler e reler as análises da autora, com o encantamento que brota de seu livro, consulte um volume da Revista Autrement anterior a Ética contra Estética. ( 8) Alí, vários escritores se interrogam sobre as divisões antigas entre ciência e arte. Uma colaboradora, Monique Sicard, enuncia o difícil diálogo entre os artistas e os que dedicam-se à ciência: “Se os criadores reivindicam uma atividade de ´pesquisador´, inversamente os cientistas usam palavras que pertencem por vezes mais ao vocabulário da estética do que da ciência. Eles falam em ´sentimento estético difícil de transmitir´, de um ´brilho enceguecedor devido à beleza dos fenômenos ou de suas explicações´. Sim, a pesquisa científica gera autênticos choques emocionais. Faltam palavras então para dizer e as pessoas se dirigem para um novo vocabulário. Como falar da emoção da descoberta? Que escondem as palavras? As que dizem ´pureza´, ´revelação´ não induziriam à certa desconfiança? O ´encanto´das partículas não existiria apenas para camuflar, precisamente, a ausência desse encanto? As palavras não teriam como função mascarar a austeridade e o rigor dos trabalhos científicos?”. (9 )
Questões próximas podem ser dirigidas aos nexos de continuidade ou contradição entre ética e estética. Durante muitos anos, por exemplo, o pensamento marxista procurou fugir de todo “esteticismo”, dada a tragédia nazista. Mas, como diz o cineasta Syberberg (ele mesmo um personagem polêmico), resultou desta fuga apenas o monopólio do estético pelos admiradores do pensamento nazista, enquanto aos cérebros de esquerda ficaram apenas os esquemas lógicos que se traduziram no fatalismo hegeliano da Revolução que nunca honrou suas promessas.
No MIT, após a catástrofe que tombou sobre Hiroshima, físicos e engenheiros que idearam os artefatos nucleares tentaram “salvar” as sensibilidades dos jovens estudantes e futuros tecnocratas lhes ensinando estética. Para isto, artistas foram contratados criando um Departamento específico. Com o tempo surgiu a surpresa: os artistas adquiriram respeitabilidade na instituição como pesquisadores, mas seu grande contributo foi o trabalho com manipulação de imagens usadas na propaganda e na TV (expressões quase sinônimas) da guerra. Por exemplo, no primeiro conflito do Golfo. (10 ) Estética contra ética e ética contra estética, a questão permanece e deve ser pensada.
Com mão segura Amelia Valcárcel introduz os problemas filosóficos da atualidade e não poupa palavras, não as mastiga. Longe da “sinceridade” ao modo de Carlyle e dos românticos (cujo patrono é Rousseau) ela não expõe sua subjetividade ou idiossincrasias teóricas, mas se instala no terreno perigoso de dois impérios, inimigos desde o momento em que Platão expulsou o poeta e o artista do Estado ético. Mas o abismo entre os campos foi trabalhado pelas pontes lançadas, não raro no vazio, por escritores que, à semelhança de Valcárcel, rompem barreiras no ato de pensar. Eles, como Spinoza, desconhecem limites noéticos. Instalados em cátedras ou delas ausentes, tais seres irriquietos representam perigo para os “queimadores de livros” (expressão saborosa e realista de Jacques le Goff sobre os mestres universitários) que desejam manter os territórios bem guardados pelas taxinomias e etiquêtas.
Há um fenômeno brasileiro que todos conhecem: a pororoca, encontro das águas escuras com as mais claras de um rio, no Amazonas. O estrondo causado pelo choque atemorizou os índios que o nomearam pela onomatopéia Poroc-poroc, o barulho destrutivo. O livro na sua mão, leitor, é uma autêntica pororoca espiritual. Nele, encontram-se as ondas violentas da ética e as que derivam da estética. Nele, é destruido o remanso das águas costumeiras, o que fornece um sopro vital para quem deseja respirar o mundo para além das estreitas e estritas margens acadêmicas. Cuidado com a navegação nessas águas. Bom proveito diante da esplêndica paisagem que se descortina graças ao trabalho de Amelia Valcárcel. Parabéns ao Senac e à Editora Perspectiva por mais este contributo de fôlego para a cultura brasileira.
Roberto Romano
Notas
(1) “Parler mal, parler trop ou ne pas parler assez sont des défauts ordinaires de la langue. Je dis à proportion la même chose au sujet de la plume. On écrit mal, on écrit quelquefois trop, et quelquefois on n´écrit pas assez”. Abbé Dinouart, L´arte de se taire, 1771 (Paris, Ed. Jerome Millon, 1987).
(2) Tuve, Rosemund. Elizabethan and Metaphysical Imagery: Renaissance Poetic and Twentieth-Century Critics. Chicago: U of Chicago P, 1947
(3) Georges Daniel: Fatalité du secret et falalité du bavardage au XVIIIe siècle. La Marquise de Merteuil et Jean-François Rameau (Paris, Nizet, 1966).
(4) Abrams, M.H. The mirror and the lamp. Romantic theory anf critical tradition. (Oxford, University Press, 1953).
(5) “Hegel ist ein Geschmack …Und nicht nur ein deutscher, sondern ein europäischer Geschmack!”. Nietzsche, F. : “Der Fall Wagner”, in Werke, Ed. Colli, G. e Montinari, M. (Berlin, Walter de Gruytre & Co. 1969), V. I, p, 30. Na tradução italiana, cf. Il caso Wagner,Ed. Colli e Montinari, M. (Milano, Mondadori, 1981), p. 26.
(6) Nietzsche, Fragmentos recolhidos por Colli e Montinari, edição italiana citada, p. 274.
(7) São absolutamente necessárias as leituras de dois livros seus, estratégicos para o debate sobre a crise atravessada pelas democracias ocidentais (existiriam democracias não ocidentais?) : Hegel y la ética (1987) e Del miedo a la igualdad (1993). Neles, a autora, “que não tem frio nos olhos” (traduzo a exata expressão francesa) enfrenta ao mesmo tempo os clássicos da ética e os critica com destemor e razões, mas também coloca-se como obstáculo ao filistinismo das cátedras, na Espanha ou no mundo. A linguagem desabrida e livre por ela utilizada é a perfeita expressão do decorum, se entendermos por esta prática o hábito de dizer as coisas como elas são, sem enfeites, sem bajulações, sem subterfúgios. A sua ensaística, onde se insere o presente livro, não reside nas prateleiras mofadas ou nas cópias (do tipo executado pelas máquinas xerox) dos autores clássicos. Elas os pensa e critica, testa os seus enunciados nas conjunturas políticas, morais, estéticas. E apresenta suas conclusões, sempre polêmicas e provisórias, pensando diante do leitor.
(8) Cf. Autrement, número 158, octobre 1995. Título da edição : Pesquisadores ou Artistas? Entre arte e ciência, eles sonham o mundo (Chercheurs ou Artistes? Entre art et Science, ils rêvent le monde).
(9) “Art et science: la chute du mur?”, na revista citada, p. 33.
(10) Cf. Epstein, Judith: “Contrechamp outre-Atlantique: les dérives d´une politique”, Revista Autrement citada, páginas 204 e seguintes.