Tu es Petrus…..
“Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam”. “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela. E dou-te as chaves do reino celeste: tudo o que ligares na terra será ligado no céu. E tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”. Nada mais esperançoso e ao mesmo tempo apavorante, na história das instituições ocidentais, do que as linhas acima, inscritas no Evangelho de Mateus ( 16, 18-19). O poder ilimitado atribuido ao papa incendeia as imaginações políticas, artísticas, sociais. Poetas e romancistas reproduziram as pompas que norteiam a vida e a morte dos soberanos pontífices. A Igreja, afirma Nietzsche, resume as culturas do Mediterrâneo. Ela sintetiza os ritos dos Estados antigos e modernos, do Egito às festas imperiais romanas e renascentistas. Nietzsche indica com dedo certeiro: o paganismo se instalara no trono de Pedro. Um monge inimigo da cultura destruiu o elo perfeito entre o mundo e o cristianismo. Seu nome? Lutero….
A Igreja recolhe as tradições políticas dos Estados que a predecederam e produz uma antropologia na qual todos os sentidos humanos servem aos seus alvos. Nela, os olhos se extasiam com pinturas e arquitetura hierática; os ouvidos recebem alimento com a música e a poesia ; o paladar se nutre das espécies sagradas, pão e vinho; o olfato se inebria com incenso e perfumes das velas; o tato é satisfeito na ritualística que permite aos crentes tocar as reliquias dos santos. Uma tal enciclopédia de artes e saberes é única na humanidade; árduo é harmonizar todos os sentidos. Para isto, serve a filosofia grega e o direito romano. A Igreja controla os fiéis com uma ordem nunca vista em outros segmentos religiosos e políticos. Sua disciplina espanta os donos do mundo. Stalin cometeu a tolice de ironizar a força bélica do soberano pontífice. A URSS desapareceu e o Vaticano segue impávido.
Elias Canetti fala sobre a Igreja: “Até hoje não houve sobre a face da Terra Estado algum que soubesse defender-se de tantas maneiras diferentes contra a massa. Comparados com a Igreja, todos os poderosos dão a impressão de serem modestos diletantes”. O tempo da Igreja mede-se em milênios: os que ela herdou das antigas civilizações (India, Grécia, Egito, Pérsia, Roma, entre outras) e os que já viveu. Ela supera a cronologia dos agentes políticos não religiosos, porque tem a promessa do intemporal, como adverte um orgulhoso Príncipe no magnífico Gattopardo : “à Igreja foi prometida a Eternidade, não temos semelhante privilégio, nós que integramos as classes sociais dominantes”. A Mater et Magistra possui a receita eficaz para sobreviver a todos os regimes políticos, expressa ainda no Gattopardo : “é preciso tudo mudar, para que tudo permaneça como sempre”.
Nenhum soberano cumpriu tão perfeitamente a missão disciplinadora das massas quanto João Paulo 2. Ele chegou ao trono no fim da Guerra Fria e no colapso da URSS. Na sua própria instituição, uma tempestade batia forte, com os ventos do Vaticano 2. Um bom pastor inaugurou o concílio, o santo João 23. Um papa hamletiano —Paulo 6— intelectual e temeroso, o conduziu ao final. Morto aquele dirigente e pensador a Igreja se contorcia em dilemas éticos e políticos, além de batalhas sobre o culto que ameaçavam sua unidade. Surge o “belo sorriso” —João Paulo 1— o papa breve. No programa daquela figura amável já se inscrevia o Termidor, necessário para garantir a disciplina do clero e das massas católicas. Mas a missão política e religiosa de colocar um basta nas audácias conciliares foi cumprida por João Paulo 2.
Erudito, poliglota, treinado nas artes cênicas, o polonês falou aos mais sofisticados cérebros e às massas tangidas pela midia. Ele exibiu de si mesmo a figura do esportista. Assim viajou muito e publicou encíclicas polêmicas e bem estruturadas lógicamente. Nessas tarefas teve o auxílio de movimentos conservadores e de políticos idem, da Opus Dei a Ronald Reagan. Ele apoiou ditadores como Pinochet. Além dos gestos do proprio soberano pontífice, abraçando efusivamente o ditador, François Hutart (Le Monde) recolheu pérolas de suas “bocas oficiais”, os bispos e núncios apostólicos, em apoio às tiranias. Na Argentina (1976) o núncio, hoje Cardeal Pio Laghi, falou assim aos soldados de Tucuman : « Sabeis o que é a pátria, cumpri as ordens com obediência e coragem, guardai o espírito sereno”. (La Nación, Buenos Aires, outubro de 1976). No Chile, o núncio sob Pinochet era o cardeal Angelo Sodano, que declarou sobre o regime: “Até as obras primas podem ter manchas; eu vos convido a não vos deter nas manchas do quador, mas a olhar o conjunto, que é maravilhoso”. No caso Irã/Contras, existem dúvidas sobre a ação da Santa Sé, como indicam os melhores biógrafos do papa, Carl Berstein (caso Watergate) e Marco Polito (Sua Santidade. João Paulo 2 e a história secreta do nosso tempo), que lembram outras maravilhas do soberano pontífice. François Hutart recorda que o Banco Ambrosiano financiou, entre outros, ditador Anastasio Somoza da Nicaragua. Leia-se o artigo de Fernando Scianna, « A Mafia no coração do Estado e do contra Estado », Le Monde diplomatique, outubro de 1982.
As teses de João Paulo 2 resumem-se ao aggiornamento do Concilio de Trento, usado como base para implodir as doutrinas inovadoras do Vaticano 2. A sua autoridade foi elevada acima de tudo e de todos. As católicas feministas e os propagandistas da “teologia da libertação” sentiram nas costas o seu peso. Além dessas rédeas espirituais, o papa rompeu com a possibilidade remota do ecumenismo. O texto Dominus Jesus acabou com o diálogo entre Roma e as religiões orientais. No setor cristão, as atitudes da Santa Sé no Conselho Mundial de Igrejas mostrou tudo, menos desejo de amplo diálogo. Além disso, o papa atenuou a autoridade dos bispos.
A Opus Dei foi elevada à condição de sua Prelatura pessoal, posta acima dos bispos. O seu fundador foi canizado em 2002. No mesmo tempo, escândalos financeiros (como o caso do Banco Ambrosiano) fizeram estragos nas contas da Igreja. Os tratos do Vaticano com os EUA são complexos e não raro inconfessáveis.
Erasmo de Rotterdam escreveu uma peça acusatória contra o Papa Julio 2, o que lhe valeu muita perseguição no século 16. Trata-se de um opúsculo intitulado “Julio, a quem se negou a entrada nos céus”. Aquele pontífice ficou famoso por comandar exércitos na santa tarefa de disciplinar os reinos e as populações italianas. Ele também ficou conhecido pela fome de impostos que pretendeu arrancar de cidades soberanas como Bolonha. Mais adepto das armas do que do Evangelho, o soberano morreu, conta Erasmo, e dirigiu-se, com armas e armaduras, às portas celestes. São Pedro não lhe permitiu a entrada no paraíso e o fulminou, comparando-o a si mesmo. Pedro nunca dirigiu nenhuma soldadesca, jamais pensou controlar a vida política dos fiéis, nunca dependeu de poder secular. Manso como o Cristo, sua missão foi desenvolvida em pobreza e caridade.
Existiram papas santos, como João 23, ou intelectuais, como Pio 12 e Paulo 6. Existiram papas estadistas e disciplinadores das massas e das mentes, como João Paulo 2. No caso deste último, a imaginação dos romancistas já produzem obras nas quais o pontífice aparece como homem de ferro. Um Richelieu do nosso tempo, com a inteligência estratégica de Bismarck. Quem deseja tremer diante do futuro, devido ao legado de João Paulo 2, leia o romance bem escrito publicado recentemente nos EUA por Arun Pereira : Papal Reich. A novel. O título diz tudo: os novos poderes mundiais deixam de ser os Estados laicos. Surge a velha Respublica Christiana em seu esplendor. No outro lado do mundo, renasce o Islã. Ambos lutam para vencer os infernos. E os infernos reúnem os que não aceitam o mando clerical, os “infiéis”. Pesadelo? Imaginação louca? Apenas advertência de um escritor que sabe ler os sinais dos tempos.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007
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