sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

A desgraça humana talvez não seja tão relevante assim para a natureza

Uma breve reflexão sobre a Teodicéia


Roberto Romano
Professor de Ética e de Filosofia Política da Unicamp.

A morte e a vida se entrelaçam no pensamento ético, desde a Grécia antiga. Se Platão afirma que “a filosofia é o aprendizado da morte”, Spinoza retruca ao afirmar que a filosofia se exerce tendo a vida como alvo. Entre os dois extremos, escritores os mais diversos tentaram compreender as violentas catástrofes que jogam os animais humanos no fio entre o Nada e o Ser. Alguns eventos carregam peso maior na soma das horríveis desgraças que fazem a humanidade flutuar entre o medo e a esperança. O terremoto de Lisboa no século 18 foi um deles. Os maremotos que destruíram milhares de vidas na Ásia, em nossos dias, recordam o quanto somos entes frágeis.

“O que é o homem no interior da natureza? Um nada face ao infinito, um tudo face ao nada, um meio entre nada e tudo. Infinitamente afastado de compreender os extremos, o fim das coisas e seu princípio são para ele invencivelmente escondidos num segredo impenetrável, igualmente incapaz de ver o nada de onde é puxado, e o infinito onde é imerso. O que ele fará, pois, senão perceber alguma aparência do meio das coisas, num eterno desespero de conhecer tanto o seu princípio quanto o seu fim? Todas as coisas saíram do nada e seguem ao infinito. Quem seguirá tais errâncias espantosas? O autor dessas maravilhas as compreende. Todos os demais não o conseguem.” (Pascal, Pensamentos)

As linhas de Pascal saem do Livro de Jó. Naquele escrito o Senhor humilha o humano que pretende julgar o sentido e a extensão do universo: “Onde estavas tu”, pergunta o Altíssimo ao deplorável Jó, “quando eu lançava os fundamentos da terra? Dize-me, se tens entendimento. Quem lhe pôs as medidas, se é que o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre que estão fundadas as suas bases, ou quem lhe assentou a pedra angular, quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus? Ou quem encerrou o mar com portas, quando irrompeu da madre; quando eu lhe pus as nuvens por vestidura, e a escuridão por fraldas? Quando eu lhe tracei limites e lhe pus ferrolhos e portas, e disse: Até aqui virás, e não mais adiante, e aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas?” ( 38, 4-11).

Imaginemos, com as linhas acima, os tsunamis. As comportas oceânicas foram quebradas por ordem divina ou porque ferimos a conexão das causas e dos efeitos com a nossa orgulhosa ciência ou técnica? Nossa desgraça é tão relevante assim para a natureza? Perguntas assim nortearam a teodicéia, a tentativa (na maior parte ridícula) de se desculpar Deus pelos males do mundo. Já Platão adverte: “Os deuses são inocentes.” A filosofia persegue a tarefa de compreender a morte do cosmos, procurando desculpar o grande Autor da natureza.

Na Teoria do Céu, Immanuel Kant analisa as catástrofes na gênese do universo. Não esqueçamos o terremoto de Lisboa: ele matou milhares em pouco tempo, sendo a referência na época para se pensar a teodicéia. O que afirma Kant? “Não é preciso nos espantar”, diz ele, “se constatarmos a obra da morte mesmo na mais esplendorosa das obras divinas. Tudo o que é finito e que tem um movimento e uma origem, carrega em si a marca de sua natureza limitada, deve perecer e chegar a um fim.”[1]

O homem tem a morte como companheira e as catástrofes testemunham este fato: “Como a fragilidade própria das naturezas finitas trabalha sem cessar para a sua destruição, a eternidade conterá em si todos os períodos possíveis para conduzir finalmente, por uma decadência progressiva, o instante de sua destruição.”

Kant recorda o pensamento de Newton sobre o universo. Newton, “grande admirador das qualidades divinas na perfeição de suas obras (…), viu-se obrigado a predizer à natureza a sua destruição final pela tendência natural que a mecânica do movimento tem para esta destruição. Desde que uma parte do sistema, tão pequena quanto se quiser supor, é necessariamente, em conseqüência da instabilidade do sistema, conduzida à destruição no fim de um tempo suficientemente longo, seguir-se-á forçosamente que, no curso da eternidade, chegará um momento em que estas diminuições sucessivas terão esgotado todo movimento”.

O Nada irrompe no mundo e tudo desaparece na Morte. Mas a vida brota do cadáver universal. “Caso sigamos”, adianta o pensador, “pelo infinito dos tempos e dos espaços, esta Fênix que é a natureza, que se incendeia apenas para reviver de suas cinzas; se vemos como, na própria região em que ela envelheceu e onde morreu, a natureza renasce inesgotável, ao mesmo tempo que num outro limite da criação, no espaço da matéria bruta e informe, ela progride sem cessar, alargando sempre o plano da manifestação divina e preenchendo com suas maravilhas a eternidade bem como o espaço, o espírito que abarca todo este conjunto se abisma numa profunda admiração”.

Kant usa a palavra do poeta para dizer o indizível. O sublime espetáculo das catástrofes que presidem a passagem da vida à morte no universo recorda os versos de Van Haller: “Quando o mundo for envolto num segundo Nada; quando, de tudo o que existe ficar apenas um ermo; quando os céus sempre renovados, resplandecentes de estrelas, terão atingido o fim de seu caminho; serás sempre um eterno devir, como agora.”

A natureza no perene estertor da morte, causa medo aos humanos que nela vivem. O pavor invade as almas e as faz sentir os seus limites. Perto das ondas gigantescas, das montanhas elevadas, dos terremotos que tudo dissolvem, os homens são insetos. Edmund Burke, o inspirador de Kant e de todo o pensamento moderno sobre o sublime, notou com sarcasmo: “Não existe espetáculo que procuremos com maior avidez do que uma calamidade extraordinária e rigorosa: que as desgraças se apresentem aos nossos olhos, ou que a história as traga para nós, sempre experimentamos uma delícia que, longe de ser sem mistura, é marcada por uma grande inquietação. A delícia que nos proporcionam tais cenas de miséria nos impede de fugir delas.” Ao comentar este juízo, Baldine Saint Girons afirma que as catástrofes nos trazem um “gozo selvagem, um prazer tingido pelo horror”.[2]

Basta refletir sobre a recepção ocidental dos tsunamis, para distinguir em boa parte da mídia o aproveitamento da miséria e do desespero para vender tempo na TV, espaço nos jornais. Este uso não é imposto pela imprensa aos observadores, ele atualiza o prazer e o horror primitivos que nos ligam à natureza. Diante da morte alheia, ou da sua miséria, gememos num instante. Mas suspiramos deliciados quando não somos as vítimas. Burke é mais cruel: para ele, a visão das desgraças das quais escapamos, liga-se à nossa busca de fugir do tédio. Lucrecio, o poeta romano que mais louvou a natureza, foi o autor dos versos que melhor traduzem o gozo diante da hecatombe caída sobre outros corpos que não o nosso: “Suave, mari magno…” É doce ver um navio que afunda, sob o furor das ondas, quando estamos em lugar seguro, num monte longe da borrasca…

Quando ocorreu o incêndio no Edifício Andraus, eu estava nas proximidades do prédio. A multidão em volta erguia urros a cada pessoa que escapava do fogo atirando-se no abismo. A partir de certo número de corpos que se jogaram, um grito se elevou, cada vez mais rouco e obsceno: “Pula! Pula! Pula!” Não. Rousseau não tem razão. O homem não é naturalmente bom. Certo é Hobbes, o homem é o lobo do homem.

A natureza é poderosa. Para atenuar a sua violência urge muita ciência e astúcia. Se os países devastados pelos tsunamis tivessem aparelhos técnicos de aviso e prevenção, muitas mortes seriam poupadas. Mas é preciso anuir, seguindo Kant, com a tese de que o universo é perene catástrofe. Ilhas de segurança são enganadoras miragens de paz. Nada mais.





[1] O tema foi tratado por mim em trabalho mais amplo e analítico no livro coletivo intitulado A Paz Perpétua. Um Projeto para Hoje. Kant, Derrida, Rosenfeld, Romano. (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004).
[2] Baldine Saint Girons: Fiat Lux. Une Philosophie du Sublime. (Paris, Ed. Quai Voltaire, 1993.)

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