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Ciência como vocação
ROBERTO ROMANO
Em 1919, momento histórico desgraçadamente definitivo com a Guerra Mundial, certo professor, chamado a se pronunciar sobre a universidade, disse coisas relevantes sobre a vida científica alemã como ponto de partida para uma reflexão sobre o saber e o mundo social. Refiro-me a Max Weber, teórico por excelência da sociologia. A primeira observação apresentada aos seus ouvintes é que na Alemanha os institutos de pesquisa em medicina ou em ciências naturais eram empresas “capitalistas estatais”. Neles, equipamentos e recursos pertenciam ao Estado, sendo os docentes expropriados dos meios de produção. Weber usa com frequência o fenômeno descrito por Karl Marx, da separação (Trennung) entre a pessoa que trabalha e os meios. Assim, na história da Igreja Católica ele sublinha o momento em que aMater et Magistra se instaurou como imensa burocracia espiritual, no fim da Idade Média.
A Sé romana expropriou bispos, abades, provinciais e párocos da propriedade dos meios espirituais e materiais necessários à salvação. Os clérigos passaram a depender do Sumo Pontífice para a sua nomeação e para o exercício do cargo. Tudo o que estava na diocese ou nas paróquias deixou de ser propriedade do titular e passou para as mãos da Igreja universal com sede em Roma. Também o carisma tornou-se algo próprio da instituição. Pouco importava se X ou Y ocupassem o bispado ou a Sé romana. Eles eram apenas a mimesis, a imitação de Pedro.Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam . A instituição vale mais que os indivíduos que a compõem, porque a ela e somente a ela foi prometida vitória contra o Inferno. Uma lúcida dedução lógica desse raciocínio foi efetivada pelo principe de Salina, em O Leopardo , de Lampedusa. Quando o confessor lhe diz que os ricos abandonam a Igreja, o nobre cientista replica: “não, padre, as várias aristocracias estão conscientes de sua mortalidade. Apenas a Igreja é perene e se ela considerar preciso nos sacrificar, o fará. E com toda razão”.
Também na empresa moderna. Nela, tanto o operário quanto o gestor são expropriados dos meios de administração e de produção. As empresas determinam-se como burocracias e não é por acaso, adianta Weber, que a Igreja foi a primeira empresa coletiva e internacional de salvação. Há um espelhamento entre a faina produtiva e o mundo espiritual dominado pela racionalidade calculadora moderna. Assim também a universidade. Nela, professores e pesquisadores assistentes não produzem ciência de maneira imediata. Eles dependem “do diretor do instituto tanto quanto, numa fábrica, um empregado depende do gerente, uma vez que o diretor do instituto acredita, com toda a sinceridade, que o instituto é ‘seu’, ali ele é o patrão. Conseqüentemente , o assistente cientista alemão leva o mais das vezes o mesmo tipo de vida precária de qualquer pessoa em posição de tipo proletário, e como o assistente na universidade norte-americana”. Exagero? No caso dos EUA, ainda hoje várias universidades que reúnem ganhadores do Nobel, recebem milhões de dólares do Estado e das empresas. Pouco se menciona que, naquelas mesmas instituições, assistentes jovens, sem a Tenure (garantia de manutenção no emprego) dão aulas e aulas, operam como verdadeiros servos dos grandes nomes e da universidade.
Essa lógica é inflexível. Mesmo que não existam muitos notáveis num campus, os grupos de pressão e de ascensão na ordem funcional operam como privilegiados coletivos. A eles são destinadas as grandes verbas de pesquisa e deles saem os representantes das universidades nas agências de financiamento, avaliação, etc. Os professores alheios aos referidos grupos são empurrados para a condição proletária nas salas de aula, nas tarefas consideradas menores e inferiores. Ao constatar a expropriação dos docentes alemães e norte-americanos de seus dias, Weber afirma com ênfase: “Internamente, tanto quanto externamente, a estrutura da universidade tradicional tornou-se ficção”.
As universidades paulistas enfrentam uma crise de autonomia. É bom bom ler e reler a magnífica conferência de Weber, intituladaCiência como Vocação . Com o seu complemento necessário, Política como Vocação , aquelas análises podem conduzir os jovens e antigos professores à consciência de seu estatuto real no mundo da economia e da sociedade. Quando um exercício semelhante é feito, muitas ilusões se perdem. Por mais desengano que tais páginas candentes tragam, é possível no entanto nelas encontrar frases como a seguinte: “nada tem valor para um ser humano se não puder fazê-lo com dedicação apaixonada”. Apesar de todas as intempéries, os docentes, alunos e funcionários da Unicamp, liderados pela Reitoria e pelo Conselho Universitário, dizem não aos patrões do Estado que tentam lhes arrancar as derradeiras fibras de autonomia e paixão pela ciência, vivas no campus. Talvez eles consigam atingir o alvo. Mas não será missão muito fácil.
Em 1919, momento histórico desgraçadamente definitivo com a Guerra Mundial, certo professor, chamado a se pronunciar sobre a universidade, disse coisas relevantes sobre a vida científica alemã como ponto de partida para uma reflexão sobre o saber e o mundo social. Refiro-me a Max Weber, teórico por excelência da sociologia. A primeira observação apresentada aos seus ouvintes é que na Alemanha os institutos de pesquisa em medicina ou em ciências naturais eram empresas “capitalistas estatais”. Neles, equipamentos e recursos pertenciam ao Estado, sendo os docentes expropriados dos meios de produção. Weber usa com frequência o fenômeno descrito por Karl Marx, da separação (Trennung) entre a pessoa que trabalha e os meios. Assim, na história da Igreja Católica ele sublinha o momento em que a
A Sé romana expropriou bispos, abades, provinciais e párocos da propriedade dos meios espirituais e materiais necessários à salvação. Os clérigos passaram a depender do Sumo Pontífice para a sua nomeação e para o exercício do cargo. Tudo o que estava na diocese ou nas paróquias deixou de ser propriedade do titular e passou para as mãos da Igreja universal com sede em Roma. Também o carisma tornou-se algo próprio da instituição. Pouco importava se X ou Y ocupassem o bispado ou a Sé romana. Eles eram apenas a mimesis, a imitação de Pedro.
Também na empresa moderna. Nela, tanto o operário quanto o gestor são expropriados dos meios de administração e de produção. As empresas determinam-se como burocracias e não é por acaso, adianta Weber, que a Igreja foi a primeira empresa coletiva e internacional de salvação. Há um espelhamento entre a faina produtiva e o mundo espiritual dominado pela racionalidade calculadora moderna. Assim também a universidade. Nela, professores e pesquisadores assistentes não produzem ciência de maneira imediata. Eles dependem “do diretor do instituto tanto quanto, numa fábrica, um empregado depende do gerente, uma vez que o diretor do instituto acredita, com toda a sinceridade, que o instituto é ‘seu’, ali ele é o patrão. Conseqüentemente , o assistente cientista alemão leva o mais das vezes o mesmo tipo de vida precária de qualquer pessoa em posição de tipo proletário, e como o assistente na universidade norte-americana”. Exagero? No caso dos EUA, ainda hoje várias universidades que reúnem ganhadores do Nobel, recebem milhões de dólares do Estado e das empresas. Pouco se menciona que, naquelas mesmas instituições, assistentes jovens, sem a Tenure (garantia de manutenção no emprego) dão aulas e aulas, operam como verdadeiros servos dos grandes nomes e da universidade.
Essa lógica é inflexível. Mesmo que não existam muitos notáveis num campus, os grupos de pressão e de ascensão na ordem funcional operam como privilegiados coletivos. A eles são destinadas as grandes verbas de pesquisa e deles saem os representantes das universidades nas agências de financiamento, avaliação, etc. Os professores alheios aos referidos grupos são empurrados para a condição proletária nas salas de aula, nas tarefas consideradas menores e inferiores. Ao constatar a expropriação dos docentes alemães e norte-americanos de seus dias, Weber afirma com ênfase: “Internamente, tanto quanto externamente, a estrutura da universidade tradicional tornou-se ficção”.
As universidades paulistas enfrentam uma crise de autonomia. É bom bom ler e reler a magnífica conferência de Weber, intitulada