sábado, 17 de fevereiro de 2007

Contra o Foro Privilegiado para os Políticos.

Revista Caros Amigos

Rumo ao Inferno, com Todos os Privilégios


Roberto Romano


No debate sobre o foro privilegiado e a mordaça, precisamos visualizar as formas de pensamento que, sem dissimulação, defenderam a desigualdade entre os homens e definem hoje as desigualdades sociais, como a dos escravos e senhores, macho e fêmea, criança e adulto, cidadão e estrangeiro. A filosofia é a disciplina do espírito que maneja, com franqueza, as piores mentiras e as sublimes verdades. Como em Platão: "Mente melhor quem mais sabe". Vejamos, entre os defensores da desigualdade, Aristóteles, pai de boa parte dos sistemas jurídicos até hoje ideados pela civilização (?) ocidental. Segundo ele, os homens são naturalmente desiguais : "É por natureza que a maior parte dos seres manda ou obedece", (Política, 1260a 9). Da desigualdade brota a hierarquia social e política, fundamentada em termos biológicos. "É de um modo diferente que o homem livre manda no escravo, o macho na fêmea, o pai no filho." As desigualdades servem, no entender de Aristóteles, para a vantagem de todos, dirigidos e dirigentes.

Tal doutrina justificou a hierarquia estatal durante milênios. Na Igreja Católica, ela assegura o poder dos sacerdotes sobre os leigos. Nas teorias de Dionísio, o Pseudo-Areopagita, que influenciou todo o pensamento católico, Deus não pode ser visto, ouvido, tocado pelos homens. Entre o divino e os entes humanos surge uma escala de seres, dos anjos aos padres e destes aos governantes. A hierarquia civil e religiosa liga-se à idéia de lei natural que faculta direitos, deveres e privilégios. Os sacerdotes têm mais direitos e privilégios do que os reis. Estes possuem maiores direitos e privilégios do que os nobres, os quais possuem mais direitos e privilégios do que os comerciantes e agricultores proprietários. Estes têm mais direitos e privilégios do que os servos. A hierarquia dos privilegiados apresenta, entretanto, limites. Embora desigual, o direito assim determinado levaria em conta o bem da multidão. Em Tomás de Aquino encontramos tremendas críticas aos governantes que usam o mando em benefício próprio. "Se o governo se dirige não ao bem comum da sociedade, mas ao bem individual de quem governa, ocorre um regime injusto e perverso, e o Senhor ameaça tais dirigentes por intermédio de Ezequiel, que diz: "Ai dos pastores que apascentam a si mesmos!, ou seja, dos que buscam o benefício próprio (...) Porque os pastores devem buscar o bem do rebanho e cada um dos dirigentes o bem da sociedade a eles submetida" (Tomás de Aquino, De Regno).

Os privilégios na sociedade aristocrática e sob os reis geraram movimentos e doutrinas que ressaltavam os vícios da percepção política hierárquica. Dos levantes camponeses na Alemanha (século 16) à revolução puritana e desta à Revolução Francesa, o pensamento arrasou a idéia de uma desigualdade natural dos seres humanos. O golpe mais profundo naquela doutrina encontra-se em Rousseau. Após as denúncias do Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, o Contrato Social estabeleceu "uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, ao se unir a todos, só obedeça a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes". Proteger os bens e as pessoas: sobretudo contra os governantes que desejam para si a propriedade privada do Estado. Governo corrupto, pensa Rousseau, deve ser demitido imediatamente pelo povo soberano. Infelizmente, os instrumentos para essa demissão, como o Tribunato, não tiveram força para sanear a República. A quase impossível defesa do Estado honesto atormentou os revolucionários. No Termidor, foi restabelecida a desigualdade entre os cidadãos e os governantes, recebendo os segundos, de sofistas como Boissy d’ Anglas, o título de "melhores". Melhores porque possuíam propriedades. Melhores porque as mesmas propriedades, na sua maioria, vinham do uso corrupto dos bens públicos. Os "melhores", todos jacobinos arrependidos, um dia acreditaram na democracia e agora instauravam a ditadura dos empresários. Alain Badiou tem ótimas indicações sobre o assunto no livro coletivo dirigido por K. Kinstler, cujo título é bem atual: A República e o Terror.

A ruptura com a democracia, na era napoleônica e na sua sucessora, a Restauração, foi traumática. Os liberais, como Benjamim Constant, na trilha de E. Burke e de outros reacionários, baniram a igualdade política. Hegel ousou afirmar que no Estado "ocorre uma desigualdade (Ungleichheit), a diferença entre forças: dos governantes e governados, poderes públicos, autoridades, presidências etc." (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, parágrafo 539). Só nas revoluções socialistas, alemã e russa, anteriores à Primeira Guerra Mundial, recuperou-se a tese da igualdade. Os "democratas" liberais foram obrigados a colocar a democracia na boca, nunca na alma. O nazismo e o fascismo acabaram com a igualdade, ressaltando a hierarquia política e social como valor supremo. Eles sumiram, em parte. Depois, a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamou: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos". Mesmo a Igreja Católica, no Vaticano 2, afirma a igualdade jurídica como um bem a ser assegurado pelas instituições políticas. O neoliberalismo, inimigo da ordem democrática, negou a igualdade econômica, política e jurídica dos entes humanos, ao pensá-los no interior do mercado e com "um mínimo de direitos sociais".

O período FHC (antecedido pela "era Collor") tudo fez para expulsar a igualdade do Estado brasileiro. O governo seria função "superior" dos mestres universitários. A ralé foi definida como "caipira", "neoboba", "vagabunda", sempre que exigiu direitos iguais. A própria idéia de "direitos" foi anatematizada, com a sua "flexibilização", sinônimo de "modernidade". Caminhamos, em oito anos, para o pretérito. Cada ano do calendário correspondeu a um século de atraso na vida democrática. Com a lei da mordaça e do foro privilegiado, chegamos aos privilégios hierárquicos da Idade Média e do período absolutista. Notem como, no Brasil, os cargos políticos tornam-se herança de pai para filho. Eles deixam de ser um mandato do povo soberano, a única autoridade numa democracia real. No Parlamento e no STF, vem o passo para instaurar um Estado nobiliárquico, sem nobreza e com muita lama. Para os cidadãos honestos, aceitar o foro privilegiado é deixar-se confundir com os que subtraem riquezas dos cofres oficiais. Se inocentes, os poderosos têm condições de ampla defesa. Se culpados, a exceção por eles usufruída abre as portas para a ruína da res publica. Com o privilégio odioso, a cidadania aprenderá, finalmente, que é lícito furtar "no indicativo, no imperativo, no mandativo, no optativo, no conjuntivo, no permissivo, no infinito" desde que alguém se instale num cargo político. E o que ocorrerá conosco, cidadãos soberanos agora aposentados? A resposta, como a seqüência dos tempos verbais acima, encontra-se no padre Vieira: "companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; companheiros dos ladrões, porque os consentem; companheiros dos ladrões, porque lhes dão postos e poderes; companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem". Falta a frase final, para os tíbios que não se insurgem contra os abusos e os privilégios vergonhosos de toda sorte que afligem a nossa vida política: "são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo". Aviso aos universitários, cúmplices silenciosos dos tiranos: não se esqueçam de levar consigo o seu volume particular de Rimbaud!

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Este espaço é uma tentativa de colocar à disposição de pessoas interessadas alguns textos teóricos, certas observações críticas, análises minhas e de outros.

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PROFESSOR DE FILOSOFIA UNICAMP