segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Últimos dos Bárbaros


Este post segue um rumo não desejado por mim. Esperava escrever neste Blog só coisas teóricas. Existem momentos, no entanto, em que é preciso deixar livre a indignação. Mesmo Spinoza, o mais calmo dos filósofos, fez um cartaz e saiu pelas ruas da Holanda, protestando contra os assassinos de um estadista. "Ultimos dos bárbaros", estava escrito no cartaz. É isto aí: Ultimi Barbarorum.

Acostumado à vida brasileira, poucas vezes tive uma tristeza tão grande quanto a que senti ao ler hoje, na Folha, o texto do Ombudsman sobre a criança esquartejada no Rio. Pior me senti ao ler um especialista convidado a tecer comentários sobre a cobertura da imprensa.

Em termos éticos, assistimos uma corrosão dos valores em nome de supostas objetividades. O pai de uma vítima é chamado a falar sobre o trabalho da imprensa no caso em pauta. O genitor de um jovem assassinado, diz que no seu juízo, o labor jornalístico é correto. Mas ele não sabia que logo acima de seu testemunho viria um título tremendo: "Emoção e Histeria". Assim, logo de início, sua fala é desqualificada de modo singular. No comentário do especialista, os jornais são acusados de partidarismo e de campanha pró-redução da idade penal. As provas? Elas são localizadas pelo analista... no emocionalismo da cobertura ! Uma tautologia, pois: os jornais são emocionais e movem emoções para convencer os leitores sobre uma tese emocional. Tenho mais respeito pela inteligência dos jornalistas brasileiros, mesmo dos que defendem o governo federal, cujas teses sobre o caso são encampadas na coluna do Ombudsman. Os infratores, para não dizer assassinos, são vistos com olhos piedosos pelo cientista político. Um dos acusados, diz ele, parecia estar sendo esganado. E o professor denuncia o linchamento do pobre infeliz. Já denunciei inúmeros linchamentos reais. Quanto a este, seria interessante saber se algo resta do acusado. Nos que denunciei, nada sobrou das vítimas. Certo, certo. Até julgamento final, ele é apenas acusado. Mas existem acusados e acusados. No caso, a culpa foi testemunhada por muitos. Embora seja necessária a cautela basilar (reus sacra res), não é possível ignorar que o crime foi cometido e nem é possível eludir o fato de que ele foi obra daquelas pessoas.

Sou dos poucos acadêmicos ativamente contrários ao espetáculo das televisões e rádios que usam a violência para aumentar o Ibope. Mas não posso aceitar a corrosão axiológica que se apresenta sob a capa da ciência objetiva. Sine ira et studio ? Sim, mas não ao ponto de inverter situações, culpabilizando vítimas. Histérica, digo sem receio, é a desculpa de toda violência que venha de bandidos. A pobreza não inocenta atos selvagens. Eu pediria aos frios analistas que apenas imaginassem, mais não é preciso, seus filhos de seis anos esquartejados pelas ruas, ou suas filhas violentadas e mortas, após torturas, ou seus filhos sequestrados e mortos. A ciência ascética é alibi dos que não têm solidariedade humana. O ombudsman, ao apresentar o comentário do especialista, exibiu marcado e insofismável tom aprovativo. Como é dificil ser brasileiro. Aqui, como nos Silenos de Alcibíades (o texto é de Erasmo), tudo é invertido.

Uma coisa é defender a imprensa com o ideal de objetividade. Outra, diferente, é agredir as vítimas da violência apodando-as de histéricas e julgando negativamente veículos da midia porque assumiram posições candentes. Quid facti? Os bandidos esquartejaram o menino. Quid juris? Existe dúvida em relação a um acusado, ainda menor de idade. Quanto aos demais, a tipificação do Código Penal é clara. Apoio, na justiça e na ordem pública, os advogados que defenderão os assassinos. Como apoio, com o mesmo vigor, os promotores que os acusarão.

Mas o primeiro dever de toda pessoa humana, esteja ela no governo ou na oposição, na imprensa ou nas universidades, nas fábricas ou nas ruas, é apoiar as vítimas. Sem este imperativo não existe ética, moral, direito. As quadrilhas chegaram aos limites do inferno com seus procedimentos. Escrevi tempos atrás, na Folha, um artigo sobre as técnicas de comando de Fernandinho Beira Mar. O texto segue abaixo dos comentários oferecidos pelo Ombudsman. A frieza dos que esquartejaram a criança no Rio e a exibida pelo chefe de quadrilha, é a mesma. A violência histérica é praticada pelos bandidos.

Quando ocorreu o massacre do Carandiru, lutei contra a monstruosidade. Quando ocorreu o massacre dos Carajás, fiz o mesmo. Sempre que a polícia tortura, mata, humilha, me levanto, mesmo sob ameaças à minha pessoa e família. Considero histéricos, além dos bandidos, os que se calam ou apoiam a violência. Histérico, hoje, é quem produz boa consciência objetiva para si mesmo, ignorando a dor alheia. No caso desta dor, nada é objetivo. E também no caso da cobertura da imprensa, que não pode ser objetiva como o experimento de um laboratório. Se alguém leu I. Kant, sabe muito bem que tudo o que se passa no mundo da ação livre dos homens é subjetivo.

Entusiastas da objetividade ignoram que as noções de pai, filho, valor, são signos de ordem cultural que só ocorrem no mundo da invisível consciência subjetiva das pessoas. Ética, direito, moral, crime e castigo são significados não objetivos, não têm a marca da natureza externa aos sujeitos. E sujeitos humanos experimentam dor, esperanças, paixões, desalentos. Se os fatos são enumerados com rigor pela imprensa, se ao fazer isto os jornalistas não ferem nenhum direito, então o seu estilo, o seu tom apaixonado ou frio, são questões menos relevantes. Importa, sim, à imprensa, não deixar de lado o que foi feito e quem o fez. Porque não existe razão de Estado para o jornalismo.

Os limites humanos foram deixados para trás —a banalidade do mal não é apenas uma frase elegante de Hanna Arendt, para ser repetida em seminários ou salões de gente fina, é uma realidade hedionda que precisa ser denunciada, seja quem for o indivíduo que banaliza o malefício— sendo perceptível o coro que busca absolver a priori os assassinos. Em outros corais, repete-se o refrão sociológico falso que indica a pobraza como causa do assassinato. É lamentável a falta de rigor lógico e factual exibido nestas orquestras dogmáticas. E também não venham com a Escola de Base: naquele caso os atos não foram provados, as acusações foram levianas e a imprensa idem. Agora, o mundo inteiro viu e sabe o que ocorreu, conhece os culpados. Falar que um deles foi ameaçado é constatar o obvio, pois em tais situações o mínimo a ser exibido é raiva contra quem tortura, esquarteja e mata crianças impunemente.

Boa parte dos acadêmicos que hoje tomam conta do país, passou pelas cadeias e torturas da ditadura. Hoje, remunerados e importantes, não se interessam pelo que ocorre nos distritos policiais, nas periferias e nem mesmo nos bairros de classe média. Eles se acostumaram aos bairros nobres, aos palácios, às benesses do dinheiro e do poder.

Roberto Romano

Segue o texto da coluna do Ombudsman, na Folha.

"Emoção e histeria


Masakata Ota, pai do menino Ives Ota, seqüestrado e morto em 1997 em São Paulo, avalia como "bom" o trabalho da imprensa paulista no caso de João Hélio. Na sua opinião, os jornais têm cobrado mais providências das autoridades. Não considera a cobertura sensacionalista ou excessiva. As avaliações de dois observadores da imprensa são diferentes, principalmente em relação a alguns jornais do Rio.

Inácio Caño, sociólogo do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro: 'Estou achando a cobertura péssima. Em primeiro lugar, pelo excesso de exposição. Alguns jornais do Rio deram metade da Primeira Página para a notícia como se tivesse estourado a Terceira Guerra Mundial. Em segundo lugar, a cobertura é muito emocional. Alguns jornais estão em campanha pela redução da maioridade penal. Há uma mistura entre uma posição editorial, a qual os jornais têm todo o direito, e uma cobertura jornalística que acaba influenciada pela posição editorial. Número três: há fatos graves que alguns jornais simplesmente omitiram por conta dessa cobertura tão emocional. Se você vê aquela foto dos acusados, tem um cara sendo esganado. E isso, na maior parte dos jornais nem sequer é comentado. Com o passar dos dias, os jornais evoluíram para uma cobertura mais reflexiva, mas inicialmente a cobertura foi extremamente emocional. Evidentemente não é um problema só da imprensa, mas a imprensa acaba estimulando essa reação emocional das pessoas e dos políticos. Várias propostas estão andando, depois vão parar até o próximo caso. Acho que a imprensa deveria fazer um pouco de autocrítica sobre a cobertura. É claro que o jornal tem de mostrar a notícia, é uma notícia perturbadora e tem de ter difusão. Mas acho excessivo esse patamar de exposição. O Jornal do Brasil, do Rio, deu como manchete 'O que eles merecem?'. Era um convite ao linchamento. E mostra muito claramente a diferença de uma cobertura emocional de uma cobertura mais objetiva".


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Notícias do inferno

(Tendências e Debates, Folha 09/03/2000)

Roberto Romano

"Nas ações totalitárias e violências cometidas em regime democrático, sempre existe um componente que fala em defesa da humanidade, mesmo dos carrascos. São raros os assassinos de corpos ou de almas orgulhosos dos crimes que cometeram. Quase todos buscam justificar seus atos, invocando alguma razão. É certo, dizia um crítico do regime stalinista lembrado por Claude Lefort, que os assassinos de Shakespeare (como Macbeth) só não foram à mais profunda carnificina porque lhes faltou estofo ideológico.

A ideologia, simulacro da razão, dá às piores covardias uma roupagem aceitável. Afinal, uma coisa é matar por simples prazer. Outra seria destruir membros da família humana em nome de valores eminentes, como a família, os bons costumes, a segurança coletiva.

Essas facetas do ente humano se desnudaram, para mim, quando abri a Folha de 3/3 (pág. 1-10). De repente, percebi que há comportamentos novos no mundo político e no campo ideológico. O jornal publicava o diálogo de certo teatro da crueldade, em que o silêncio unia frases com a firme característica de ser, cada uma, terrível punhal a rasgar a consciência dita civilizada.

Um bandido, Fernandinho (ah, esses diminutivos!) Beira-Mar (como soa poético...), pergunta, pelo telefone, sobre os progressos na tortura e morte de um rival. E o supliciado responde, falando sobre as qualidades digestivas de suas próprias carnes. O estômago retorcido, a cabeça girando, os olhos molhados, fechei as folhas com vergonha da espécie humana. Animais nunca atingirão esse nível de crueldade.

Plutarco, em tratado em que defende os direitos dos bichos contra os que elogiam a superior estatura do ‘animal racional’, dizia que os primeiros têm razão. O livro espanta quem imagina sermos o ponto mais elevado da natureza (ou dos decretos divinos). Eis o título, traduzido para o latim: Bruta animalia ratione uti. Os animais usam a razão.

No Fausto, Goethe fornece a perfeita narrativa do comportamento humano em contraste com as feras. O diabo diz ser o ‘deusinho do mundo’, sempre o mesmo, e afirma que o homem viveria melhor sem o reflexo da luz celeste a ele concedido pela divindade. A luz ele batiza com ‘o nome de razão. E dela usa apenas para ser mais bestial que todas as feras’.

O periódico, com semelhante reportagem, cumpriu sua função, expondo as entranhas do narcotráfico e das quadrilhas. No domingo (5/3), nesta página, a Folha trouxe um artigo luminoso de Drauzio Varella, mostrando que as atrocidades cometidas pelos traficantes recaem sobre os bandidos menos graduados. Nunca um cheiroso frequentador de colunas sociais e de camarotes importantes chegou para valer à beira das cadeias e dos tribunais.

Varella poderia ter recordado o trabalho de Alba Zaluar, que demonstra a ‘opção preferencial’ dos traficantes graúdos pelos jovens, negros, pobres como bucha de canhão na guerra das quadrilhas entre si e com a polícia.

Enquanto a imprensa cumpriu seu papel, o governo carioca mostrou-se digno da ‘razão’ descrita em Plutarco e Goethe. Anthony Garotinho (ah! os diminutivos...) e o secretário da Segurança usaram, como arma política fria e sem piedade, a gravação do diálogo bestial entre os bandidos. O mesmo governador, dias atrás, empreendeu uma inusitada reforma semântica, fazendo distinção entre ‘chacina correta’ e falsa chacina. A primeira teria como alvos as pessoas honestas. A segunda não mereceria o nome. Daí para outras distinções nefandas e pouco sutis o passo foi dado. Como o uso da tortura praticada pelos bandidos como propaganda governamental.

O alvo do governo carioca, neste momento, é um cineasta. Os artistas do poder não gostam de concorrência. Outro visado é um intelectual sério, que tenta unir o conhecimento e a prática da justiça, o professor Luiz Eduardo Soares. Os donos do Rio não sabem qual caminho escolher na escalada rumo ao Planalto. Eles têm ao seu dispor a via dos direitos humanos, simbolizada pelo antropólogo Soares. Mas a senda tortuosa, aberta pelo malufismo, que insiste em desvincular o problema da violência de suas causas sociais também está sendo ensaiada pela administração do Rio. A exposição da fita mencionada entra nessa lógica.

Em termos éticos, a imprensa tinha o dever de publicar a fita. Também em termos éticos, o ato cometido pelo governo, de divulgá-las como retórica para garantir certos meios repressivos e uma candidatura presidencial, violenta o público e a dignidade humana. Se o governador é cristão, ele deve considerar que esse ato só pode ter recompensa num plano do universo: o inferno.

Roberto Romano, 53, filósofo, é professor de ética e filosofia política na Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas)]"

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