sábado, 17 de fevereiro de 2007

Rousseau, religião e moral

Revista Cult


Rousseau, religião e moral

Roberto Romano


Quando a crise ética se generaliza, ressurgem os filósofos preocupados com a intolerância. Caso não sejam pensadas e prevenidas, as violências físicas e simbólicas podem conduzir à morte de milhões, uma certeza anunciada em notícias sobre o terror. É comum o pavor esconder-se sob a máscara religiosa. Na intransigência no dogmatismo assassino, encontra-se um complexo de paixões e doutrinas denominado fanatismo. Contra essa teratologia moral, o pensamento cético exerce influência muito salutar. O militante fanático devora o seu deus, se empanturra com verdades absolutas, expele ódio. Este último explode as suas entranhas, cujos estilhaços matam inocentes e os jogam rumo ao Nada. A dúvida é antídoto poderoso contra essa antropofagia. Montaigne, o homem do “que sais-je?”, é o grande nome no combate ao fanatismo. Depois vêm outros iguais ao muito equívoco Pierre Bayle, que afirmou ser possível viver a moral correta em sociedades atéias. Finalmente, a memória chama os francamente ateus: Diderot, por exemplo, para quem não se deve transformar Deus em um punhal. Poucos aceitam que Rousseau também recusa o fanatismo. O campeão da igualdade é visto como intolerante e dogmático, imagem devida aos radicais da Revolução Francesa que, no Terror, usaram o nome do filósofo para abençoar a guilhotina dirigida contra os “inimigos do povo”. No mesmo intento, veio o projeto de impor um estranho culto ao Ser Supremo. Desse modo, o Contrato social é visto, de maneira enganosa, como a fonte do fanatismo político laicista e da intolerância democrática. Poucos escritores, mesmo Nietzsche, foram mais longe na pintura de certo Rousseau entusiasta do que o espanhol Donoso Cortés. Diz este ideólogo – que nutriu os cérebros de Franco e de Pinochet, também inspirando teóricos totalitários como Carl Schmitt – sobre Rousseau: “Não era um filósofo, porque não conhecia profundamente a filosofia e a história; porque era profeta, homem predestinado, personificação terrível do povo. Por tal motivo ele se encarniça contra todas as opiniões e desafia todos os filósofos, lança raios contra todas as eminências sociais e poderes constituídos. Não contente em destruir, levanta sua bandeira e escreve seu dogma, que se tornaram a bandeira e o dogma da Revolução.” Rousseau afirmava a soberania popular? Ora, replica Donoso, “a soberania de direito é una e indivisível. Caso pertença ao homem, não pertence a Deus; se for localizada na sociedade, não existe no céu. A soberania popular, pois, é ateísmo; e se o ateísmo pode se imiscuir na filosofia sem transtornar o mundo, não pode ser introduzido na sociedade sem paralisá-la e conduzi-la à morte” (1). Essa imagem de Rousseau, a mais vulgar, não foi inventada por Donoso. Veremos logo abaixo quem a engendrou. Contudo, essa imagem também é a mais mentirosa. Durante bom tempo, a desculpa para não ler o filósofo encontrou-se na caricatura do fanático que separa os nossos olhos do pensador. Não por acaso Iring Fetscher afirma que a parte do Contrato social mais duramente criticada é o trecho sobre a religião civil. Fetscher sublinha a necessidade imperiosa, se alguém quer de fato entender o significado daquelas páginas, de se examinar o problema da religião no Estado republicano, tal como Rousseau o apresenta e resolve. (2)

Para que se efetive esse árduo trabalho, no entanto, é preciso reler alguns textos nos quais o âmbito religioso foi expressamente discutido pelo filósofo. Dentre eles, estratégica é a magnífica carta a Christophe de Beaumont, o arcebispo de Paris que alertou suas ovelhas contra o Emilio. Beaumont acusa no autor um “homem cheio da linguagem da filosofia sem ser verdadeiramente filósofo”. Temos, portanto, a fonte utilizada por Donoso Cortés para caluniar Rousseau. Urge retomar o processo judicial e filosófico instaurado em Paris e que se prolonga em nossos dias. A atual pesquisa histórica procura os lambões da verdade nos debates do século 18. O século das Luzes também foi época de grandes mistificações. Para dissolvê-las, Jean Balcou publicou extenso dossier sobre Fréron e seus inimigos (Diderot, Voltaire e outros). Quem leu o Sobrinho de Rameau sabe a virulência da caçoada ali produzida e dirigida contra Fréron, Palissot e quejandos. No referido dossier, encontramos a figura fantástica de Malesherbes, amigo dos que subvertiam o trono e o altar, mas, ao mesmo tempo, responsável pela censura real. Diderot escapou muitas vezes da cadeia por obra e graça de Malesherbes. No livro de Balcou, lemos cartas dirigidas ao alto funcionário, redigidas pelos intelectuais em guerra. E aprendemos a matizar os juízos acerca de quem ganha o pão cotidiano com a pena e mata seus concorrentes com o mesmo instrumento. (3) No caso de Rousseau, surge em nosso país a tradução da Carta a Christophe de Beaumont, seguida de escritos similares. (4) Como era de se esperar, o organizador da coletânea (verdadeiro dossier), acrescenta cartas do filósofo a Malesherbes. Elas revelam e escondem o difícil Rousseau, mas trazem análises notáveis sobre a religião, a moral, as Luzes e as trevas do século 18. Nada direi sobre a Carta. Mergulhe o leitor nas frases exatas, perfeitas em termos lógicos e retóricos, do filósofo que defende seu pensamento e sua honra. A tradução excelente recebe, no texto introdutório escrito por José Oscar de Almeida Marques, um apoio magistral. O dossier contribui para o conhecimento efetivo do filósofo e inclui documentos que elucidam as posições diversas sobre a religião, os costumes, o direito e a política. É correto realizar julgamentos críticos na história da filosofia, mas se o preceito jurídico exigido por Kant não for considerado, e se for negligenciada a leitura de todas as peças do processo, o juiz/leitor será incompetente. Quem deseja entender o “problema Rousseau” abra as páginas belamente traduzidas deste livro. Leitura obrigatória para os que se dedicam à ética e à política, ele traz um sopro vital aos que não aceitam o fanatismo. O prudente exame das razões diminuirá o veto irracional contra Rousseau, enriquecendo os juízos sobre um escritor que ajudou a moldar a nossa terrível modernidade. Não, certamente Rousseau não defendeu o fanatismo ético e político, mas tantos filhos bastardos ele gerou, que a sua biografia com eles se identifica. Quem não consegue ir além das anedotas e dos lugares-comuns que obnubilam a escrita e a vida do filósofo não merece a sua prosa. Merece o simulacro de doutrina ensinado nos Departamentos de Filosofia tradicionais. Mas isso é assunto de cabeças estreitas. E Rousseau foi tudo, menos afeito às seitas universitárias sem ética, sem moral, sem política.

NOTAS

1 “Lições de Direito Político” , 1836, In Obras completas de Donoso Cortés (Madrid: BAC, 1970), T. I, p. 344.
2 Uso a edição italiana: La Filosofia Politica di Rousseau. Per la storia del concetto democratico di libertà (Milano: Feltrinelli, 1972), p. 161. Um trabalho recente e importante sobre o tema foi exposto por Genildo Ferreira da Silva: Rousseau e a fundamentação da moral: entre razão e religião (Campinas: Unicamp, 2004).
3 Balcou, Jean. Le dossier Fréron, correspondances et documents (Genève: Droz, 1975).
4 Marques, José Oscar de A. (org.), Jean-Jacques Rousseau: Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral (São Paulo: Estação Liberdade Ed., 2005). Traduções de Adalberto L. Vicente, Ana L. S. Camarani, José Oscar de A. Marques, Maria Cecilia Q. M. Pinto.

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